terça-feira, 28 de junho de 2016

Utente do SNS

Utente do SNS

Desde que nasci que gasto do serviço nacional de saúde. Do tempo em que trajava um pano cruzado, firmado por um gigantesco alfinete, carinhosamente apelidado de alfinete-de-ama, nada recordo. Como utente, as memórias primeiras, são as do tempo da escola primária[1]. Nessa época, a malta da enfermagem ia à escola dar as vacinas. Eram momentos de horror! Parecia o minuto 92[2] para alguns adeptos de futebol.
Na altura frequentava também o posto médico. Daí, recordo as palavras da senhora do guiché: “vai ter que aguardar, o senhor Dr. só chega às 11 horas!” Tinha cá um azar… as minhas consultas sucediam sempre um turno de mais de 72 horas na urgência. Com toda a calma do mundo, lá se aguardava pela consulta. Afinal já eram 9 horas e só tinha 10 pessoas à frente. Sim, só 10 pessoas! Na altura já eram praticadas as vigílias nocturnas à porta do posto médico. Após proveitosa espera, lá era atendido sem grandes delongas, isto claro, para não atrasar o almoço. Não julguem porém que o Senhor Dr. não era atencioso. Aliás, sugeria sempre: “se precisar, passe no meu consultório, estou lá todos os dias até às 11 horas!
Além do posto médico, visitava também as urgências hospitalares. Ai sim, era uma tragédia! Senão vejam. Logo para começar não era utilizada a triagem de Manchester. Além de não ser fino, eramos privados de uma senha verde, que facilmente nos habilitaria a ficar residentes do local. Em vez disso, a ordem de atendimento seguia um procedimento estranhíssimo: ordem de chegada! Felizmente, a malta madrugadora do posto médico só fazia o turno da tarde.
No hospital, para gozar de atendimento prioritário só havia duas hipóteses: ou nos apresentávamos na horizontal ou então tínhamos um primo que tinha um amigo cuja mulher do irmão do pai trabalhava no local. Dado a sofisticação da primeira via, a malta com constipações passava no café para falar com um primo[3], para este dizer ao amigo, para telefonar à mulher do irmão do pai, a avisar que estavam à porta das urgências, já com uma pneumonia.
Das incursões às urgências resultou alguma frustração. Primeiro, nunca fui considerado prioritário no atendimento. Tenazmente, teimei em aparecer na vertical e, para agravar a situação, o meu único primo não tinha amigos. Mas pior que isso foi o travo amargo que carreguei durante anos por nunca ter padecido de uma virose. Ele era isto, era aquilo e não sei mais o quê, viroses é que nada! Agora, os putos vão ao pediatra e é quase garantido que são contemplados com uma virose. O trauma é tal, que ainda hoje não arrisco perguntar à mãe de um gaiato que vem do médico, qual foi o diagnóstico.
Contudo, a questão das viroses quase ficava esquecida quando por volta dos 20 anos, embora a ferros, lá adquiri uma maleita porreira, sarampo! Ainda assim, não era a mesma coisa. Afinal de contas, um indivíduo com idade para ser adulto, mesmo que a isso as acções não correspondam, pintas vermelhas na cara só podem ser restos da puberdade ou então crise figadal.
Movido pela ambição, resolvi estabelecer-me como hipocondríaco. Ramo de especialização em enfartes e AVC´s. Esta sim foi a tábua de salvação para escapar às frustrações e amarguras antigas. Senão vejam. O estatuto do hipocondríaco permite desenvolver todo e qualquer tipo de sintomas associados às mais variadas maleitas, incluindo viroses! À pois é!
Iniciei rotinas diárias de taquicardia, suores frios e afrontas diversas. A juntar a isso, elaborei um histórico da tensão arterial, com pelo menos cinco medições diárias. Reunidas as condições, procurei abraçar em exclusivo a carreira de hipocondríaco.
Nesse sentido, resolvi candidatar-me a uma baixa médica. Armado com um braçado de chapas ao tórax e análises de todas as raças lá fui à junta médica. Apesar da panóplia de potenciais maleitas, a junta deliberou que a condição necessária e suficiente para obter a baixa era estar morto. Ora como isto envolvia o meu posicionamento na horizontal de forma irrevogável[4], resolvi dedicar-me à causa apenas em part-time.
O empenho e dedicação à arte foi tal que até com senhas cor-de-laranja fui agraciado em urgências hospitalares. Mesmo assim, não escapei a ser escalado para turnos de espera superiores ao horário dos funcionários. Em desespero de causa, houve ocasiões em que cheguei a ponderar desenrascar um amigo para o meu primo! E acreditem, só não fiz porque ele, ambicioso, andou a estudar e pior, licenciou-se em engenharia civil[5], pelo que teve que emigrar.
À parte disso, foi muito proveitosa a actividade desenvolvida. Consultas de todas as especialidades, baterias de exames, enfim, as incumbências habituais de um hipocondríaco. Uma dor no braço esquerdo indicará sempre que está eminente um enfarte. Jamais será reumático! Afinal há que ter brio profissional. Mas acreditem que nem sempre foi fácil. Imagine-se que na altura procuravam apoiar o diagnóstico médico em resultados de exames! Que disparate!
Não obstante, após profícuos anos no exercício do ofício, senão é que surge um obstáculo quase intransponível. Saí aprovado com distinção de uma dura prova de esforço! Parecia estar perante um fim de carreira inglório. Mas não! Voluntaria-me para os hipocondríacos sem fronteiras! Vai daí, integrado na AHI[6] fui para as Caraíbas. Nem a propósito, pus os pés em terra e iniciei actividade: vista cansada e ânsias!



[1] Sim, aquela de arquitectura duvidosa e onde se podia chumbar!
[2] Vide campeonato português de futebol 2012/2013.
[3] Tinha de ser, não havia telemóveis e não sabíamos o número de telefone do café.
[4] Notar que a morte em nada se compara a uma demissão.
[5] Como foi pedreiro uns anos, obteve equivalência a curso e meio.
[6] International Hypochondriac Association.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

O empreendedor


O empreendedor

Terminados os estudos surgiu o dilema: trabalhar por conta de outrem ou criar o próprio emprego? Felizmente, na tomada de decisão imperou o bom senso, ou seja, trabalhar prontamente saiu da equação. O destino impingiu-me o mundo dos negócios; ramo de actividade todo e qualquer com subsídio. Consequência disso, ainda hoje não tenho possibilidades para possuir carro próprio. Sou forçado a deslocar-me num topo de gama da firma, pois o ordenado mínimo não dá para mais. Uma tristeza!
Contudo, a estreia nos empreendimentos não foi nada fácil. Não fora a minha tenacidade, espirito combativo e um pai abonado, talvez tivesse mesmo desistido. Apreciemos o exemplo. O projecto pioneiro tinha por base uma ideia cuja genialidade era, no mínimo, comparável à descoberta da roda. A dita, consistia na distribuição via wireless de energia eléctrica trifásica! Todavia, superiores interesses e, quiçá, pontuais electrocuções rapidamente transformaram o ovo de Colombo em fracasso.
Posteriormente, deparei-me com um autêntico diamante em bruto. A agricultura! A escolha por este ramo de negócio não poderia ter sido mais feliz! Logo para começar, sem mais requisitos, a minha juventude foi alargada até aos 45 anos[1]. Além disso, permitiu potenciar os profundos saberes já detidos na área[2].
Após candidatura a uns trocos a fundo perdido, lá consegui financiamento para desenraizar umas oliveiras e adquirir um jipe. Embora com o orçamento já algo limitado, investi igualmente num tractorzeco com 600 cavalos, ar condicionado e orientação por satélite. No entanto, o potencial do tractor viria a revelar-se algo limitado, uma vez que não sobrou capital para adquirir alguns extras, nomeadamente aqueles que habitualmente se penduram na sua traseira, alfaias e não sei mais o quê... Mesmo assim, o dito não deixou de ser uma mais-valia para o negócio. Efectivamente, os 300 cavalos do jipe também gostavam da palha[3], gentilmente facilitada para alimentar os respectivos do tractor.
Seguindo o excepcional projeto agrícola, foram plantados coqueiros no lugar das oliveiras. Estranhamente, os ditos não se acostumaram aos ares da Beira Interior. Ainda hoje, estou perfeitamente convencido que o problema foram as alterações climáticas, nomeadamente, o degelo na Antártida. Grandes males… grandes remédios! Com novo subsídio arranquei os coqueiros, plantei oliveiras e com o remanescente comprei um modesto apartamento no Algarve.
Enquanto aguardava que as oliveiras dessem fruto, resolvi alargar o negócio ao gado ligeiro. Após detalhada análise dos amparos financeiros, a opção recaiu sobre ovelhas e cabras. Para desenvolver competências na área, frequentei um workshop sobre a dita rapaziada. Foi muito proveitoso, após 20 horas de formação já sabia distinguir na perfeição as cabras das ovelhas e dos cães. Também não seria de esperar outra coisa, afinal o formador para além do sólido conhecimento teórico acerca dos animais de quatro patas, costumava visitar um avô que em tempos tinha tido uma cabra.
No entanto, mesmo na posse das competências necessárias para lidar com ovelhas e cabras, de toda e qualquer espécie, surgiram algumas dificuldades devido à natureza estranha dos seus comportamentos. Estes animais, além de madrugadores, teimavam em comer todos os dias[4]. Mais, na hora da ordenha alguns havia que não contribuíam com leite. E pior, ficavam mesmo bastante agressivos. Para resolver o problema, quem não cooperava na ordenha era abatido. Curiosamente, liquidado o grupo dos teimosos findou a procriação por parte das restantes. Deve ter sido do desgosto…
Por outro lado, o abate dos rebeldes levantou ainda outro problema: confusão na contagem dos animais para efeitos do subsídio. Para facilitar o trabalho do fiscal, resolvi desenvolver e implementar um programa tipo Erasmus, para ovelhas. O intercâmbio, além de promover o bom relacionamento entre a vizinhança proporcionava à bicharada uma visão além curral. Foi um sucesso! As cabras e ovelhas nem pareciam as mesmas. Efectivamente, algumas nem o eram, uma vez que convenci um dos vizinhos de que o fiscal lhe tinha confiscado parte das ovelhas.
Entretanto, as oliveiras lá cresceram e começaram a dar fruto. Por esse motivo, surgiu a necessidade de contratar um entendido na matéria. Dirigi-me ao centro de emprego e solicitei um profissional encartado no domínio das azeitonas. Os referidos serviços, após rigoroso processo de selecção, lá recomendaram um candidato. Este, que por acaso era primo de uma amiga da funcionária que o indicou, era no mínimo um visionário. Só para terem uma noção do seu nível de conhecimento, assim sem mais, sugeriu que se esmagassem as azeitonas para fazer azeite.
No entanto, essa coisa de fazer azeite implicava a colheita da azeitona e, pior, não existia subsídio para tal. A solução foi requerer um subsídio para arrancar as oliveiras e, posteriormente, vendê-las para lenha. Mais, peguei no tractor, nas cabras e ovelhas e vendi tudo por atacado.
Depois disso, visando alargar horizontes, fui para o estrageiro. Nem mais, passei a ser um cérebro empreendedor em fuga! Todavia, as saudades e, ultrapassado que estava o período em que arriscaria ser condenado por fraude fiscal, acabaram por ditar o regresso! Nem a propósito, viria a ser convidado para integrar um novo desafio. Nem poderia ter sido de outra forma. Afinal, eram já sólidas as competências adquiridas, não apenas na pátria mas também além-fronteiras, no domínio das insolvências. Enfim, fui convidado para administrador de uma empresa pública. Área de trafegueio: energia, nomeadamente a do retalho de combustíveis. Esse viria a ser o culminar de um sonho de infância[5]
Todavia, o auge nos negócios, apenas viria a ser alcançado mais tarde e, seria no mundo das finanças. A arte da negociação de títulos viria a revelar-se o meu real talento. Como que por obra divina, fui abençoado com capacidades de previsão, fosse lá qual fosse o ramo de negócio. Passei ainda a dispor de roliços montantes de capital, cedidos pela banca, sem que para isso tivesse que apresentar qualquer tipo de garantia. Tudo seguia pelo melhor, não fosse ter atingido os 45 anos. Pois é, chegara o momento da aposentação! Além disso, o banco que amavelmente patrocinava o negócio, padecia não sei do quê. Ao que parece, o achaque era o mesmo do queijo suíço, buracos!
Já aposentado, estabeleci-me como comentador, na radio, televisão e onde quer que fosse, desde que ressarcido! Os temas abordados nos comentários, limitados à minha humilde esfera de conhecimentos, iam desde o padrão de tecidos para cortinados de cozinha até misseis balísticos.




[1] Idade até à qual se é considerado jovem agricultor.
[2] Desde tenra idade que semeava ervas aromáticas em floreiras.
[3] Na época o gasóleo agrícola ainda não era tingido de verde.
[4] Incluindo domingos e feriados.
[5] Em catraio gostava de brincava às bombas de gasolina.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

A estudar também eu...


A estudar também eu…

Aos 6 anos de idade, já honoris causa em vadiagem, fui incorporado na escola primária[1]. Tal instituição tinha costumes que, no mínimo, podemos classificar de estranhos. Exemplo disso eram os horários a cumprir, os trabalhos de casa, enfim aquilo a que hoje chamamos de responsabilidades.
No que toca à arquitectura, a escola padecia de uma enorme falta de gosto. Imagine-se que na época, as primárias eram todas semelhantes. Além disso, os materiais utilizados na sua construção não incluíam madeiras nobres nem tão pouco ladrilhos especiais de corrida. Então e o mobiliário! Além de ser igual em todas elas, não era de autor. Um escândalo!
Na altura senti alguma nostalgia. Tinha acabado a pré-primária! Como melhor e, único, utente da instituição, a classificação alcançada nas actividades, não raras vezes, roçava os vinte valores ou melhor, o hematoma. Uma mãe não perdoa… Contudo, na primária a derradeira classificação passaria a resultar da apreciação do consórcio mãe-professora. Com esforço, lá mantive a média. Sem falsas modéstias, mas querendo, poderia mesmo ter alcançado outros patamares. Ainda assim, não fui ambicioso. Senão reparem. Uns bonos caseiros estavam à escassa distância de uma singela referência a um puxão de orelhas da professora. Sim, na época os professores podiam puxar as orelhas, sem que daí resulta-se a instauração de um processo disciplinar por agressão[2]. Enfim, de facto, eles quase nem nos tocavam… apenas direcionavam a bela da cana ou a régua de madeira.
No que toca ao ensino, este era algo estranho. Além de termos que aprender a ler e a escrever português, reparem bem, podíamos ser penalizados por cometer erros ortográficos. Então e a tabuada! Era obrigatório sabê-la de cor, de trás para a frente e vice-versa. Afinal, para que servem as calculadoras! Mesmo assim, foram anos de glória. Esqueçamos lá as férias passadas de castigo.
Movo agora o sentimento que em dois momentos, deveria ter dado por concluído o não menos que brilhante percurso académico. Findada a 4ª classe, seria o primeiro deles. Afinal já escrevia o nome completo sem olhar para a cédula[3] e, fazia contas sem contar pelos dedos. O nível de conhecimento era tal que já sabia o nome de todos os distritos do País e que o rio Tejo nasce em Espanha, enfim gramática.
Na época, na posse de tais habilitações literárias poderia ter chegado longe. Só para terem uma noção, comparo com os tempos actuais. Então teria sido, por exemplo, caixeiro, exactamente o mesmo que hoje, com sorte, espera um grosso número de licenciados. Afinal, o ensino primário da altura era puxadinho!
Porém, lá continuei a estudar, ou melhor, a passear os livros. A propósito de livros, imaginem que na época a sua validade era superior a um ano lectivo. A justificação para tal é que existiam elevadas preocupações ambientais, ou seja, nada de abater árvores para fazer livros. A política era estimá-los. Logo, o primeiro passo após a sua compra era usar umas quaisquer folhas, de padrão sempre a roçar o bom gosto[4], para forrar a capa dos ditos.
Além disso, as matérias eram completamente diferentes das agora abordadas. Não existia, por exemplo, a extra mundana e contínua evolução das regras de aritmética, rios a nascer teimosamente por todo lado e a gramática em constante mutação. Por estas e por outras, temos hoje de sacrificar a ecologia a bem de uma aprendizagem que queremos actualizada.
No que toca à vida académica, no ciclo[5] as melhoras foram poucas. Se na primária era castigado, nos anos seguintes continuei a sê-lo, mas isto só para manter o ritmo! Umas vezes à rasca, outras como que por milagre, lá fui avançado nos anos lectivos. Por ser um pouco gabarolas, tenho de fazer aqui um aparte. Na altura, e vejam bem a injustiça da coisa, era possível e às vezes bastante provável, reprovar o ano. Isso mesmo, repetir o ano escolar! Imagine-se, a idade não contava para nada! Felizmente, esse aspecto foi corrigido para não forçar perdas de tempo a ninguém. Afinal chega a ser desumano impor um número de classificações positivas a tantas disciplinas diferentes. Resumindo, sou o maior! Tendo tido a possibilidade de reprovar, isso nunca sucedeu.
Ainda assim, algumas foram as vezes em que a sorte não me bafejou. Em fase já avançada da adolescência, propícia a adquirir vícios, escapei aos escuteiros e às drogas, mas fatalmente também às associações de estudantes. Neste domínio, foi determinante a falta de espírito combativo e revolucionário, necessário para agitar bandeiras em manifs. Consequência disso não participei em importantes lutas, como por exemplo, a pela abolição da Prova Geral de Acesso ao Ensino Superior (PGA), esse teste complicado. Eu cá adorei a dita, para além de não saber o que estudar, logo não o fiz, bastava estar a horas, embora de madrugada[6], armado com uma esferográfica.
Contudo, entendo agora que se tivesse participado nessa luta, ou outras do mesmo calibre, estaria agora provavelmente agarrado a uma vida bastante desagradável. Talvez fosse dirigente de uma força política, ou pior, deputado ou quem sabe até ministro. Obrigado aos poderes superiores que me pouparam a tão penoso sofrimento. Afinal, que mais desumano haverá que ser eleito por um distrito, muitas vezes só pisado em viagem de férias, ou a caminho delas, e conseguir compreender e revindicar os seus direitos, enfim um inferno! Depois, teria de viver em Lisboa auferindo de um miserável subsídio de deslocação. Mas pior ainda, seria que prévias e profundas convicções pessoais, afinal, não passarem de coisas de momento. Felizmente passei ao lado de tudo isso.
Bom, voltando à vida académica, assumo novo erro crasso. Definitivamente, o abandono da carreira académica deveria ter acontecido lá pelo 9º ano. Sim, haveria sido o momento certo! Nessa situação, teria angariado uns cobres[7] enquanto aguardava pela oportunidade certa para prosseguir estudos. Contudo, estou ciente que a dúvida surgiria: novas oportunidades ou maiores de 23? Que dilema! Contar a história da minha vida ou ir para um curso de engenharia, sem nunca antes ter tentado resolver uma equação de qualquer grau ou degrau, sei lá. Ainda assim, com alguma frieza, julgo que escolheria o trajecto correcto: novas oportunidades, seguido de um curso numa Universidade qualquer.
Lá prossegui o secundário e, sorte à parte, lá conseguiu finalizar um curso técnico-profissional. Sim, um daqueles extintos que agora parece que são úteis para actuar sobre a profissionalização. Agora vejam bem, isto sim, foi uma nova oportunidade, desenrasquei uma vaga no Ensino Politécnico. Foi uma sorte[8], dado que essa época antecedeu a do surgimento massivo dos mesmos, que depressa se assemelhou à dos tortulhos. Notem que disse Ensino Politécnico e não superior, porque se repararem, hoje fala-se muitas das vezes de Ensino Superior Universitário e de Ensino Politécnico. Provavelmente, os ensinamentos de um mesmo curso de engenharia são diferentes. Melhor, temos, por exemplo, o Engenheiro Superior Universitário e o Engenheiro Politécnico.
Por outro lado, relembro que então as engenharias eram meia dúzia, hoje são umas seis dúzias. Lá está, as engenharias sofrem da mesma moléstia das matérias dos livros escolares, mutação constante! Só quem não quer, é que não entende a necessidade de existirem algumas engenharias, como por exemplo, a Engenharia das árvores de casca castanha, ramo dos eucaliptos e afins. Ora sigam o raciocínio, mutação das matérias, mais livros, mais papel, logo alguém tem de se preocupar com estes assuntos.
Bom, sabe-se lá como, mas sem equivalências, lá obtive o canudo!




[1] Actualmente, por ser mais chique, tais estabelecimentos são designados de escolas do 1º ciclo.
[2] Os ajustes de contas, entre progenitores e professores, não eram praticados. Ao invés, ambos podiam afiambrar os gaiatos.
[3] O bilhete de identidade só era necessário para ingressar no ciclo. Ou, como se chama agora, 2º ciclo.
[4] Folhas com padrão de embrulho de Natal eram um clássico.
[5] Agora designado de 2º ciclo.
[6] Lá por essas 10 horas.
[7] Não confundir com cobre, proveniente de outras fontes.
[8] O facto de ser calão, não contribuía em nada para as classificações obtidas. 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Fardas só no carnaval



Fardas só no carnaval



Apareci por cá no final do estado novo, ou melhor, na primavera dele. Logo, não tive a oportunidade de ser perseguido, nem de estar exilado em locais dantescos, tipo Paris. Mas, mais uma vez, fui um verdadeiro sortudo. Pois é, escapei à guerra do Ultramar. Vocês que foram ex-combatentes considero-os os maiores. Eu cá teria fugido!

Mesmo na carência de escaramuças, lá pelos meus 20 anitos, fui convocado para a inspeção militar. A importância da ocasião era tal, que obrigava a tomar banho e ao uso de traje a rigor, com gravata e tudo! No meu caso, para não usar uma gravata emprestada, levei a do meu primo.

No dia da vistoria, além de aprumadinho, apresentei-me guarnecido com uma panóplia de exames que certificavam a limitada, para não dizer total, inoperância do esqueleto. A juntar a isso, os doze cafés ingeridos em jejum garantiam uma tremedeira desapropriada a qualquer gatilho, ou pelo menos isso julgava eu... Contudo, o veredicto viria a ser… apto.

Pior ainda, a coisa viria a roçar o desastre quando me foram impingidas as forças especiais, tipo Rambo e sei lá mais o quê. Fujam! Do cardápio de opões, lá me inclinei pela marinha.

Apesar de ter sido considerado capaz, ainda tinha um trunfo a meu favor. Protelar a incorporação! Afinal, o simples facto de andar a estudar era suficiente. Delineada a estratégia, ou seja, estudar eternamente, a incorporação ficaria reservada, na melhor das hipóteses para a pré-aposentação. Estudei de tudo, até bordados! Todavia, não valeu de nada. Além dos subsídios, cortaram-me também os adiamentos!

Enfim, lá fui incorporado. O destino viria a ser uma base naval, daquelas com barcos e tudo. Lá, viria a cumprir as únicas férias isentas de custos. Estas, acabariam mesmo por ser prolongadas, uma vez que levantar cedo sempre escapou às minhas habilidades. Rapidamente, 12 meses se estenderam a 18. Não fora pelas constantes reduções de efectivos e, provavelmente, ainda hoje por lá andava.

A recruta foi bastante proveitosa. Por exemplo, tive a possibilidade de tentar aprender a nadar. De facto, o mar usado pela marinha em nada se assemelha ao da Beira Interior. Neste, um tipo molha-se e vai ao fundo! Não fora pela cisma para com o exercício físico, praticado nas horas e lugares mais impróprios, a recruta até nem teria corrido mal. Todavia, a destacada inabilidade física apresentada, nomeadamente ao nível do flutuar, fomentou a transladação para o exército.

Ai foi no mínimo expectacular! Logo para começar, após estudo detalhado das aptidões, fiz um curso de especialização em lavagem de viaturas. A motivação era tanta, que até passei a participar em exercícios militares.

No entanto, o pavor das chefias em ver-me empunhar uma arma, determinava que a minha missão em tais manobras fosse servir de peça de caça. No fundo, até nem era mau! Só eram permitidas balas de borracha e o uso de granadas era limitado a uma unidade por caçador. As mazelas, raramente, iam além de hematomas e pequenas fraturas.

Uma das vezes cheguei mesmo a participar na semana de campo. Num rasgo de confiança, ou mais provavelmente de desvario, o comandante permitiu que integrasse o final da coluna militar aos comandos de uma Berliet. Tudo correu pelo melhor. Após 20 km, sempre na esgalha, já não avistava o final da coluna e tinha atrás uma fila de trânsito que se estendia por dois distritos.

Chegados ao local, andamos pelo campo, jogamos às escondidas, pintamos a cara e até fizemos um rally-paper. A coisa correu maravilhosamente bem. Além do contacto com a natureza, a jornada só me valeu três dias de detenção. Pois, no rally-paper, que afinal era um exercício de orientação, perdi-me e fui parar a Espanha.

Em poucos meses de estadia, a folha de serviço mais parecia um romance. Na despedida, assemelhava-se a uma enciclopédia, em vários volumes. Apesar disso, a troco da promessa de não mais voltar, nem sequer de visita, recebi do comandante uma carta de recomendação. A dita era no mínimo estranha. De facto, não fora pelo nome, julgaria que o restante conteúdo da carta se referia a outro. Por exemplo, às páginas tantas dizia qualquer coisa do género: “Fiquei impressionado com a sua capacidade em finalizar as tarefas que lhe dava atempadamente”. Do “fiquei impressionado”, não tenho dúvidas, agora da “capacidade” e em especial do “finalizar tarefas”, a conversa é outra. O desespero leva a estas coisas!

Mas bom, não me fiz rogado e procurei dar uso à carta de recomendação para tentar ingressar nos escuteiros. Destes, como resposta recebi: “Recusado, considere antes a consulta de um especialista do foro mental”. Imagino que na decisão, além do bom senso, pesou o facto de um acampamento de escutas de fim-de-semana ter resultado numa tarde, isto devido à fila de trânsito provocada por uma Berliet.

Como não sou de guardar rancores, esqueci o assunto! Mesmo assim, injustamente, haveria mais tarde de ser implicado em boatos lançados na imprensa. Neles, os escuteiros eram ligados ao tráfico de órgãos e ao consumo de estupefacientes. Isto, porque sem qualquer intenção, em carta anónima, enviada a seis jornais, referi ter visto 10 lobitos a carregar um órgão, enquanto consumiam umas coisas redondas[1].

Cansado de hierarquias, estabeleci-me por conta própria como caçador! Além da farda, dispensava de autorização superior para usar arma. A única dificuldade foi persuadir o médico de família a certificar a sanidade, imprescindível para o manuseamento de armas. Confrontado com o pedido, o clínico prontamente retorquiu: “antes por os pés num balde de merda”. Perante este cenário, despedi-me respeitosamente, endereçando cumprimentos à esposa e, também, à jovem do 5º esquerdo que ele frequentava no final da tarde. Sensibilizado pela cortesia, o Dr. repensou o caso e lá emitiu o atestado. De facto, ser educado não custa nada e faz toda a diferença!

Desfeito o impedimento, ingressei numa reserva de caça, cujos associados eram exímios na arte de alvejar galinhas disfarçadas de perdiz. Tudo decorria pelo melhor. Além das perdizes, por vezes, até javalis[2] abatia. Todavia, boatos sobre fogo indiscriminado sobre fauna, flora, bens imóveis e móveis, viria a criar um clima de grande suspeição entre os associados da reserva. A juntar a isto, da parte dos agricultores vizinhos, surgiram lamentos sobre o desaparecimento de animais domésticos, nomeadamente porcos.

Por outro lado, a habilidade, ou falta dela, para manusear o equipamento bélico viria a transformar a caça numa actividade bastante solitária. Os colegas tinham sempre compromissos e, os cães permaneciam resguardados em trincheiras até ao momento de regressar a casa. Desgostoso, pendurei a arma na lareira e, agora, fardas só no carnaval!






[1] Efectivamente, por lapso, não referi que era o órgão da igreja e as coisas redondas eram smarties.
[2] A espécie existente na reserva era de cor branca.

Todos os ricos são comediantes


Todos os ricos são comediantes



Decididamente, a arte do engate é coisa que não me assiste! Na verdade, representa a mais penosa das actividades. Na primária, ainda cheguei a ter várias namoradas. Todavia, havia o detalhe… elas não sabiam! À roda dos 20 anos declarei-me a uma bela moçoila que, entretanto, em hiperventilação foi à casa de banho, para não mais regressar. Durante algum tempo, ainda alimentei a hipótese de rapto. Porém, confirmar-se-ia tratar-se de uma simples retirada estratégica. Mas bom, pelo menos fui poupado a um desfecho do género, bojarda nas ventas.

Desde então, 99% das mulheres mostram indiferença e os restantes 1%, apenas desprezo absoluto pela minha pessoa. Na verdade, qualquer ensaio de abordagem representa o primeiro passo para o fracasso. Isto, apesar do ar desenxovalhado, ser alto e espadaúdo[1]. Possivelmente, galanteios do tipo “ó joia, anda cá ao ourives!” não eram, provavelmente, a melhor abordagem.

Entretanto, decidi investir no virtual. Fiz um curso de internet, desenrasquei um retrato jeitoso e abri conta no TrombasBook. Daí em diante, foi derreter horas a fio acantonado atrás do monitor. A técnica utilizada para fisgar, passava por mostrar elevada sensibilidade[2], ser divertido e extrovertido. Em apenas algumas semanas já tinha mais amigas, virtuais, que as conseguidas em toda a vida. A habilidade para manobrar teclas era claramente superior à de orador.

Ludibriadas as presas, era tempo de impingir cafeína. Assim como quem não quer a coisa, mas até quer, soltava um “temos de combinar um cafezinho”. E pronto, aceite o convite, estaria a um pequeno passo para o sucesso. Ou então, não! Afinal não era só o meu retrato que deturpava a triste realidade. De tudo se me atravessou à frente, até freguesas de bigode! No entanto, bicudo foi o sucedido num caso em que a expressão, livre e desimpedida, apenas se aplicou à rua utilizada na fuga a um potencial espancamento, com forte probabilidade de conduzir ao escavacar de membros. Foi então que, ainda de bofes de fora, achei por bem abandonar tal actividade!

Não conformado com situação, avancei para um estudo detalhado da casta feminina. Esta, geralmente, amontoa os sujeitos masculinos em duas categorias: os bonzinhos e os engatatões. O bonzinho, venera as mulheres, mas jamais supera a categoria de amigo. Pior, acaba frustrado. Apesar da sua dedicação, leva com um “gosto de ti como amigo…” ou então, na versão mais lamechas, “és como um irmão...”. Qualquer que seja o caso, o arremate final é do tipo “não quero estragar a nossa amizade”. Aliás, é recorrente as mulheres terem afirmações do tipo: “não se encontra homem que preste”, contudo, caso topem um, fazem questão de chamá-lo de melhor amigo. Resumindo, dali não levas nada!

Por outro lado, o engatatão, é gabarolas, maniento e usa frases feitas. Tem também o hábito de assemelhar as criaturas da casta feminina a um parque de diversões. Mais, evita sempre gastar todas as fichas no mesmo carrocel! Mesmo assim, elas insistem em prestar-lhe vassalagem e, pior, massacram o bonzinho com desabafos e lamurias.

No meu caso, apesar de ser gabarolas, acabava sempre com o bolso cheio de fichas. Para contrariar tal condição, resolvi frequentar uma formação, nível 1, ministrado por um especialista da conquista. A bem ou a mal, haveria de alcançar o alvará para tal empreitada. O eleito foi o Manecas, mundialmente conhecido como o rei do petróleo. Titulo adquirido por se fazer acompanhar de um volumoso maço de notas. Para impressionar as fêmeas, transportava no bolso das calças toda a divisa do monopólio do sobrinho.

Descendente de uma afamada linhagem de marialvas, o mestre Manecas, era detentor de um vasto currículo na arte de impressionar o sexo oposto. Entre as suas conquistas mais sonantes estão, por exemplo, três inglesas quase da monarquia, uma prima afastada e uma matulona de saia ao xadrez, de sua graça Zé Tó. Esta última aquisição, ficou a dever-se à saia[3] e, eventualmente, à momentânea confusão mental provocada pela elevada carga etílica.

Certo é que os seus ensinamentos viriam a transfigurar a minha pessoa. Num ápice, passei de palhaço a divertido, de fala-barato a misterioso e, finalmente, de mono temático a enciclopédia. O traquejo adquirido permitiu-me passar a dissertar sobre todos os assuntos[4] e mais alguns. Mesmo com conhecimentos escassos, ou mesmo nulos, sobre o grosso deles, a convicção demonstrada, permitia encobrir a ignorância. Mais, tornei-me um ser tão sensível que só de pensar no Bambi, ficava lavado em lágrimas.

Além da formação teórica, fiz ainda um estágio em contexto de trabalho, nível 2 de formação. Aos sábados à tarde, numa reputada danceteria na beira da estrada nacional, aplicava na prática, isto quando possível[5], os conhecimentos teóricos.

Para complementar a formação, voluntariei-me num ginásio, marquei hora na depilação e comprei um livro de culinária[6]. A rotina diária passou a ser fazer ginásio e confecionar refeições caseiras. Obviamente, deixei de trabalhar e desenvolvi uma úlcera no estômago. Contudo, fiquei senhor de uma majestosa silhueta e mais depenado que um frango de churrasco, depois de chamuscado.

Para completar a armação, carecia apenas dos trajes e de fragrâncias francesas. Na boutique, ao lado da barraca das meias, afiançado da originalidade dos produtos, adquiri dois pares de calças, três camisas, estas bastante discretas, tinham bordado nas costas touch me. Os sapatos, esses eram do tipo desportivo, o esquerdo 41 e o direito, também. Com umas peúgas turcas, até davam um belíssimo andar!

Aprumadinho e cheiroso, chegara a hora! Dos possíveis territórios de intervenção, a opção recaiu sobre o distinto bar, o covil. Atravessado o território hostil entre o estacionamento e a porta, avancei destemido rumo à conquista. No início, os resultados da estratégia de abordagem delineada, situaram-se muito abaixo das expectativas. Todavia, lá que causei impacto, não tenho dúvidas. Afinal, o quebra-gelo em uso “Já te disseram que és linda?”, era o motor para uma evasão estilo simulacro de incêndio. Claramente estavam a manifestar-se os resquícios do período bonzinho.

Contudo, os ensinamentos do catedrático Manecas haveriam de prevalecer. Com a actualização da estratégia, o modus operandi passou para “Olá, eu sou o Brósio, Am-Brósio. Posso oferecer-lhe uma bebida?”, seguida de um “importa-se que me sente aqui?”. E pronto, estava lançado o engodo! Uns bitaites sobre isto, outros sobre aquilo, fariam dessa noite um sucesso! Por um triz, não dava uso a uma ficha!

Embora o futuro prometesse triunfos, decidi abdicar em favor dos mais desfavorecidos. Desde então, dedico-me à causa, espalhando a doutrina dos Marialvas. Afinal, o que as mulheres mais querem é um homem que as faça rir. E pelo que percebo, todos os ricos são comediantes!



[1] Exercício de autoestima. Mesmo não convencidos, temos de acreditar.
[2] Mencionar que se tem um gato é em alguns casos benéfico.
[3] Afinal era um escocês. O facto de ser apreciador inveterado de saias, com padrão de xadrez, patrocinou o equívoco.
[4] Excepção feita para os temas, carros e futebol.
[5] Em larga medida, o tempo era ocupado a dançar com colegas da minha avó.
[6] Nível 3 de formação.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Olhe, que não!


Olhe, que não!



Algumas das maiores farsas que conheço, valem-se do vermelho. Bom, quase todas. De facto, no caso da Apollo 11 a cor era o branco. Todavia, o paraquedas do seu módulo lunar era às riscas vermelhas!

Escapando à ficção científica e ao tema futebol, recordo o caso de um lobo que é submetido a uma espécie de cesariana ao bucho para retirar uma velha do dito. Nesta estória, cuja personagem principal é o Capuchinho Vermelho, a sua avó após ter servido de repasto não baqueia e o lobo fala. Enfim, tudo normalíssimo. Aliás, não fora pelo final, em que o lobo com o bandulho cheio de pedras consegue raspar-se, a coisa quase que passava.

Outras personagens que abusam do vermelho são os super-heróis. Aos bastante críveis superpoderes, um grosso número dessas personagens associam às jeitosas fatiotas em licra, o vermelho. No caso particular do super-homem será, talvez, útil fazer uma reflexão mais aprofundada acerca das suas cuecas vermelhas. Aqui, o fundamental nem sequer assenta na adequação do vermelho a tal peça de vestuário. A questão central passa antes pelo seguinte: que tipo de pessoa veste as cuecas por cima das calças? Logo à partida, a explicação óbvia sustentada pela pressa na troca de roupa é, de resto, afastada por se tratar não de um equívoco pontual, mas sim crónico. Deste modo, o tipo tem uma panca, digamos estranha, que caros amigos, uma temporada num centro de reabilitação não será de descurar.

Porém, os anteriores, nem aos calcanhares chegam daquele que considero ser o Santo Graal dos embustes trajados de vermelho. O Pai Natal! A enorme legião de crentes e, pior, de indecisos acerca da sua existência, atiram esta matéria para o domínio da higiene mental. Nem mais. Basta pensar que num popular motor de busca da internet, a pergunta: “O Pai Natal existe?” é repisada na ordem das 60 mil vezes por mês!

Todavia, admito que aos olhos de uma criança, um individuo barrigudo vestido de vermelho, barba branca, óculos redondos e rodeado por uns indivíduos intitulados de Duendes, tudo pareça perfeito. Porém, logo para começar, um olhar mais atento revela que as sobrancelhas do dito cujo afinal são pretas! Ora, por mais remota que seja a hipótese de ser apenas um problema capilar, outros detalhes de tal personagem merecerão certamente reflexão. A nível físico, apontaria apenas a desproporção do tamanho da barriga relativamente ao resto do corpo. Ora, não sendo tal volume potenciado por um enchumaço, então caros amigos, o Pai Natal dá forte no tinto!

Por outro lado, em Dezembro celebra-se o nascimento de Jesus. Crendo que o seu caso está na génese da tradição de agraciar os aniversariantes com brindes, então dos Reis Magos é a responsabilidade. Embora algo lunáticos[1], Melchior, Gaspar e Baltazar só deram os presentes em Janeiro. Logo, caso exista, o Pai Natal actuando em Dezembro, começa logo por adulterar uma tradição milenar.

Por outro lado, do cardápio de prendas dos três Reis não constavam peluches nem brinquedos barulhentos e irritantes[2]. De facto, o Messias foi agraciado com incenso, mirra e ouro. Além de ficar fornecido de artigos para defumação, o petiz ficou também com um belo pé-de-meia. A finalizar, os Reis Magos, embora com oferendas algo desapropriadas para a idade, mostraram algum bom gosto, evitando usar trajes vermelhos do tipo Flash Gordon em Belém.

Mantendo-nos no campo das suposições, ou seja, admitindo que o Pai Natal existe, vamos agora debruçar-nos sobre o seu meio de transporte. Ou seja, estamos a falar de uma espécie de carroça puxada por renas e que, imaginem, voa. Facto último, simplesmente, altamente credível. Curiosamente, nunca tive a oportunidade de apreçar um destes veículos, por exemplo, à porta de um centro comercial. Sim veículos, o plural da coisa. De facto, qualquer superfície comercial que se prese, tem um Pai Natal! Afinal não é um, mas sim vários Pai Natal! Ora, se por suposição um for verdadeiro, então os restantes são clones ou então meros embustes.

Por outro lado, será também útil analisar a abordagem do Pai Natal relativamente ao acesso às habitações alheias, ou seja, a chaminé. Seja, o hipotético verdadeiro, o clone ou um embuste, um barrigudo e uma chaminé não liga, mesmo sem labaredas. Mais, existe, no mínimo, na referida abordagem uma clara discriminação pelas crianças sem lareira.

Resumindo, se lhe entrar pela casa dentro um individuo vestido de vermelho, será que é o Pai Natal? Olhe, que não! Provavelmente será um qualquer familiar emigrado, que comprou, vestiu e nunca mais tirou um equipamento da Selecção Tuga[3]. Contudo, caso seja dia de bola, não descarte a hipótese de ser um vizinho ou amigo, que durante o processo de destilação da jornada tenha subido ao seu telhado. Independentemente do caso, não facilite, ambos são criaturas a internar. Caso o estimado leitor também acredite na existência de tal personagem, deixe-me dizer-lhe que talvez seja de aproveitar a boleia do seu amigo ou vizinho e vão juntos ao terapeuta.



[1] Que outra denominação poderá ser dada a criaturas que, não sendo marinheiros, desatam a seguir uma estrela?
[2] Após cinco minutos de utilização pelas crianças, podem originar crises existenciais e, em casos mais graves, induzir estímulos suicidas em toda a família e amigos.
[3] Inclui barrete com guizos.

Urbanização da lua


Urbanização da lua



O que vou relatar é com toda a certeza, a mais grandiosa façanha dos Tugas. Esta estória, além de linda, está repleta de heroísmo e superação. A imponência é tal, que quase enxovalha as andanças das caravelas pelos mares. Ela foi, nem mais nem menos, a corrida pela urbanização da lua!

Na origem desta épica aventura, estiveram as crescentes disputas entre dois concelhos limítrofes, situados na Beira Interior. A eterna rivalidade entre as duas potências regionais, uma situada na serra da Gardunha e a outra na da Estrela, surgiu durante a homenagem ao Santo padroeiro. O dito cujo, era agraciado com festejos simultâneos nos dois lugares. Todavia, em comum, apenas se realizava a procissão em sua honra.

No alvorar do dia 7 de Janeiro de 1969, para engrandecer a respectiva festa, cada povoação desatou a lançar foguetes para os céus, como se não houvesse amanhã. Tão estrondosa disputa, apenas viria a findar quando um foguete tresmalhado arrebentou com o santo padroeiro, já no andor para o passeio religioso da tarde. Além da descompostura do prior, como castigo tiveram que alombar com o Febras, entretanto empossado para substituir o santo Pantaleão no andor. Consequência do peso do substituto, foi preciso recorrer a substituições dos carregadores durante o cortejo. A necessidade de força bruta foi tal, que até o Tó paspalhão[1] foi convidado a participar. A integração de tal personagem, em qualquer tipo de actividade, garantia um risco quase natural da coisa correr mal e, às vezes, mesmo muito mal.

Todavia, a disputa entre as duas freguesias haveria de ser elevada aos píncaros, aquando de uma acesa discussão entre o Anacleto e o Quim-da-vaca, naturais da Estrela e Gardunha, respectivamente. A conversa primeira, acerca dos enfeites do Pingas, nomeadamente a nível da cabeça, rapidamente resvalou para o bairrismo. Conversa, puxa conversa, e o Quim atira: ”a Gardunha é tão grande que até se vê da lua!”. Vai daí, o Anacleto, conhecido por toda a região pelas suas amplificações, arremata: “pois, isso não é nada! A Estrela por ser tão alta, quase que toca na lua”. Estava a contenda quase a descambar para a parte prática, designadamente a nível da aplicação de umas arrochadas, quando o Cara-linda, filósofo de taberna, argumenta: “só há uma maneira de descobrir quem tem razão, é indo lá ver!”. Vai daí, sem estar de modas, o Anacleto declara: “não é tarde, nem é cedo! Amanhã começamos a tratar disso!”. Entretanto, o Prejudicado que assistira à discussão atirou: “já que lá vão, podiam era aproveitar para dividir aquilo em talhões para depois vender aos chineses”.

Este ambicioso projecto, acabaria por potenciar o não menos que improvável, esforço conjunto das duas populações. De facto, unidos por um objectivo comum, conseguiram patrocinios de quase duzentos contos e a colaboração pro bono do Candeias, cientista de foguetes[2].

Decorreram quatro meses, até que fosse possível anunciar o fim da construção da viatura espacial. Em Junho, tudo parecia a postos. Faltava apenas colar os autocolantes dos patrocinadores. Entre eles, sobressaia o slogan do Stand Bolacha: “Stand Bolacha, o único com quase-novos para lunáticos”.

Infelizmente, problemas com o equipamento de escrita, nomeadamente com uma caneta que escrevesse na lua, ditaram o adiar do lançamento. Após longa pesquisa, a solução para o problema acabaria por ser lançada pelo Alfredo, gaiato esguio de cinco anos, que sugeriu a utilização de um lápis de cera. Finalmente, a rampa de lançamento, a viatura espacial, o lápis de cera e o atado de foguetes propulsores, estavam a postos.

De acordo com o diário de bordo, no dia 16 de Julho de 1969 os cosmonautas, Nelo Ambrósio, Eduardo Alvim e Micael Costa, amontados na ponta do foguete, Papalvo 11, lá se fizeram ao caminho. Por ser Julho, resolveram ir pela fresquinha, partiram às seis da matina. Era para ter sido às cinco, mas teve de ser adiado porque na véspera o Alvim embriagou-se em virtude de ter recebido a conta da eletricidade.

Enquanto os bravos marinheiros do seculo XX se faziam ao céu, o pessoal de terra procurava controlar o incendio provocado pelos foguetes na rampa de lançamento, construída com fardos de palha.

Entretanto, a partir da sala de controlo, instalada num canto da tasca do Salsa, eram estabelecidas as primeiras comunicações com o veículo voador. Embora algo estranho, considerando o estado da tecnologia e a enorme distância entre os intervenientes, o facto é que as comunicações eram em tempo real. Aliás, na conversa com o presidente da junta, a voz do Nelo até soava melhor que ao vivo. Bom, o que se passou foi que o Hipólito fez não sei o quê ao telefone… Enquanto os cosmonautas rumavam ao satélite, o Ti Salsa ia administrando uns penaltis de tinto para a empurrar os ovos verdes e as pataniscas.

Finalmente, ouviu-se o anúncio da chegada à lua. O local definido para poisar o módulo lunar era o Mar da Tranquilidade, mas os destemidos cosmonautas, Ambrósio e Alvim, decidiram alunar num vale glaciar. Esta decisão deveu-se ao facto desse local ser bastante parecido com um existente na Serra da Estrela. Foi então que Nelo Ambrósio fez história ao pisar pela primeira vez solo lunar. As suas primeiras palavras foram: ”Merda! Molhei os pés”. Apesar do espaço livre para poisarem, tinham-no feito nas bordas de uma charca. Calçadas as galochas, lá iniciaram a exploração de tão inóspito local.

Recolhidas umas amostras de plantas[3], tirados uns retratos para mais tarde recordar e desfraldada ao vento a bandeira do rancho folclórico, passaram a tratar do assunto primeiro da expedição: qual das duas serras seria a maior! Foi então que a surpresa tomou conta de suas mentes. Nem Estrela nem Gardunha, não se via era coisa nenhuma!

Quando tudo parecia perdido, com a missão condenada ao fracasso, surgiu a clarividência do comandante Nelo: “Calhando não se enxerga nada por estarmos do lado de baixo da lua”. Ao que acrescentou: “talvez até seja melhor assim! Para evitarmos mais desavenças, dizemos que as duas serras são iguais e pronto!” Posto isto, comeram a bucha e foram espetar estacas para dividir a lua em talhões. Urbanizada a coisa, lá se fizeram ao caminho de regresso a casa.

Após aterrar no Zêzere, lá para os lados da Panasqueira, foram recolhidos por uma ambulância. Isto porque foram proibidos de entrar na camioneta-da-carreira, não por estarem molhados, mas porque afirmavam que tinham chegado da lua. Neste contexto, o motorista, à cautela, ligou para o 112 indicando o local onde se encontravam três indivíduos aparentando ter escapado de algum centro psiquiátrico. Com isto tudo, a festa de recepção teve de ser adiada, pois a medicação entretanto administrada aos valentes cosmonautas deixou-os a babar.

De facto, a terapêutica aplicada foi de tal forma agressiva que ainda hoje, os três apresentam sequelas. O Alvim usa uma boina da grande guerra e cavou uma trincheira em volta de casa. O comandante Nelo dá palestras sobre a experiência vivida quando foi raptado por extraterrestres. Finalmente, sobre o Micael as últimas notícias vieram do Algarve, para onde emigrou pouco tempo depois. Actualmente é conhecido por piriscas, alcunha devida ao hábito de apanhar pontas de cigarro do chão para fumar.



[1] De sua graça António Oliveira, todavia, desde gaiato passou a ser conhecido em toda a freguesia e arredores por Tó paspalhão. Tal alcunha, estabelecida pelo próprio pai, surgiu aquando de uma conversa em que o Tó o tentava convencer de que era o melhor aluno da escola. Como resposta o progenitor apenas disse: “Tó és mesmo paspalhão!”.
[2] Trabalhou na pirotecnia lá da terra até ao seu desmantelamento, nomeadamente ao nível das paredes e telhado. Acerca deste episódio, o Candeias jura a pés-juntos que não estava a fumar enquanto fazia foguetes.
[3] Evitaram recolher pedras, já que é coisa que não falta na Estrela e Gardunha.