terça-feira, 30 de agosto de 2016

Adepto da bola

Adepto da bola

Se há algo que me chateia, mesmo muito, é o Benfica não perder! O Sporting não ganhar é uma coisa, agora os vermelhos ganharem é que me custa. No mínimo o empate, meia derrota, sim é um facto, mas para mim é meia victória! Esta não voa no estádio, mas dá-me uma alegria interior tão grande, como aquela que sinto quando recebo algo das finanças…Infelizmente coisa rara, no que respeita às finanças!
Em catraio comecei a ir à bola. Num jogo da 2ª divisão1, fiquei junto a um individuo, de idade avançada, que conhecia muito bem o bandeirinha.

1. Em tempos, era a liga de uma bebida qualquer.

De facto, não conhecia apenas o homem da bandeira, sabia também a profissão da mãe, os atributos físicos do pai e, por vezes, fazia ainda referência à irmã. Fiquei fascinado! Estranhamente… o fiscal de linha nunca respondeu.
Após alguns anos a frequentar os jogos da liga secundária, resolvi reforçar a dose e passei a assistir a jogos da 1ª divisão.
Até então, apenas os acompanhava na telefonia. A emoção era outra, afinal bastava a bola passar a linha divisória que a agitação do relatador era tal que sugeria golo eminente. No estádio, era tudo mais calmo. Pelo menos sempre havia menos jogadas de perigo, isto apesar de ser igual o número de invasões do meio-campo contrário.
Por falar em invasões, recordo a operação realizada num jogo do campeonato distrital2.

2. Também esta liga, teve o nome de uma bebida.

Foram vividos momentos de grande agitação. Tudo começou quando a família do lateral direito Coxerro3 avançou colina abaixo em direcção à respectiva do médio centro, Machacho, que entretanto afrontava três adeptos, estes com motivação à mini.

3. Conhecido por todo o norte da freguesia como Pelé Branco.

Dos tumultos resultaram danos num guarda-chuva de 12 varas, efeito da repetida aplicação na lombeira do bandeirinha. Não fosse o aparato policial no local4 e poderia ter acontecido uma tragédia. Afinal o guarda-chuva era uma herança!

4. Dois militares e um cabo da GNR, automobilizados por um Land Rover.

Nos jogos da liga, cuja bebida paga mais, o espectáculo é outro. Para já, não são utilizados guarda-chuvas de tantas varas. Em vez disso, existem adeptos que se fazem acompanhar de uma espécie de bandeira, composta por um mastro com um lenço da mão preso na ponta5.

5. Modo de aplicação e efeito terapêutico idêntico ao do guarda-chuva.

Notem, porém, que aqui o uso do guarda-chuva poderia resultar algo ridículo. Para isso contribuem alguns indivíduos que em pleno Janeiro assistem à bola no estádio em tronco nu. Sim, no estádio, em casa não pode ser, na medida em que a pele do sofá é de imitação e deixa nódoa.
Durante a juventude, inspirado pelo espirito combativo e voluntarioso dos membros das claques de futebol, resolvi ingressar numa. Para estar à altura das funções, frequentei os cursos básicos de iniciação à pirotecnia, escaramuças urbanas e lançamento de projécteis. Durante algum tempo as coisas até nem correram mal. Excepção feita quando para marcar posição, na falta de outros artigos, eram arremessadas moedas. Cheguei a investir parte do subsidio de Natal6 num único jogo. Todavia, motivado pelo reumático tive que dar baixa da actividade. Agora, bola só no sofá e com a t-shirt vestida.

6. Na altura os funcionários públicos ainda tinham Natal.

Actualmente, a importância dos jogos da liga principal eleva-se ainda mais quando surgem na TV programas, em que painéis de comentadores esmiúçam os mais ínfimos pormenores de um jogo. É no mínimo brilhante, quando um qualquer ex-árbitro consegue, por exemplo, deslindar um penalti após somente dez repetições em camara lenta e, de três ângulos diferentes. Mas, mais que delicioso, este assunto, pode ser uma oportunidade de negócio. Senão vejam. Dos comentários podemos concluir que um árbitro atinge o auge da mestria lá para os 50 ou 60 anos. Como com essa idade resulta complicado correr 90 minutos, logo o arbitomóvel seria a solução! Equipado com um motor ecológico7 permitiria ao árbitro deslocar-se comodamente dentro das quatro linhas. Mais, em situações de aperto podia ser utilizado para retiradas estratégias ou, como mais vulgarmente designado, dar à sola.
Para terminar, nem poderia de ser de outra forma, parabéns à França! Afinal, não é todos os dias que se consegue um segundo lugar…
7. Todo ele pintado em verde alface e alimentado a gasóleo agrícola.



terça-feira, 9 de agosto de 2016

A alternativa é falecer


A alternativa é falecer

É recorrente no cotidiano ser-se vítima da seguinte observação: “estás a ficar velho!”. Para tal, serve de motivação, por exemplo, a dificuldade em ler letras miudinhas, o reumático que ataca ou, simplesmente, os filhos que cresceram. No meu caso, sempre respondi: ”é a vida!”.
De facto, a alternativa a envelhecer é falecer, coisa que não considero particularmente agradável. Além disso, tal desvario implicaria um forte arrombo no orçamento. Fazem ideia de quanto custa uma coroa de flores? Então e a urna? Isto, já para não falar no talhão destinado à edificação da última morada. Pois é, está tudo pela hora da morte!
Todavia, chegado aos noventa anos, entendo que não foram razões como as apontadas atrás ou, outras ainda, como o surgimento dos cabelos brancos e de rugas que marcaram o início da era do caruncho. Verdadeiramente, os primeiros sinais, surgiram quando comecei a preferir andar só, do que mal acompanhado. De facto, estou hoje convicto que a capacidade para aturar palermas é inversamente proporcional à idade. Igual indicador apareceu quando as mulheres passaram do desprezo, para um modo extra respeitoso e, em alguns casos, até carinhoso. Mais, os piropos, passaram a levar como troco, sorrisos. Estava lixado! Tinha chegado aos 70! Agora sim, estava a ficar velho!
Foi por essa idade que, muito a custo, lá consegui alcançar a reforma. Sim foi difícil! Sempre que estava quase, lá avançava ela mais um ano. Isto, a uns rapazolas de gravata, tenho de agradecer. Os mesmos que, várias vezes, consideraram que era malandro por deixar de trabalhar. Talvez tivessem razão. Afinal, só trabalhei 50 anos. Provavelmente, ainda teria muito para dar ao ofício, isto apesar de já ter a capacidade ocular algo reduzida.
Durante a minha carreira como bandarilheiro, participei em inúmeras corridas, porém, as mais emocionantes haveriam de ser as derradeiras. Recordo uma dessas lides, em que devido a uma lamentável ilusão óptica, apliquei ao corneteiro1 um par de bandarilhas.
1 É comum afirmar-se que a diminuição de um sentido apura outro. Esta poderia ser a explicação pela atracção para com o homem do cornetim. Mas não, uma vez que além da visão, a audição também já era limitada.
Facto que originou tamanha desconsolação no toiro, que teve mesmo de receber apoio psicológico. Ainda assim, fui aplaudido! Para isso contribuiu, a manifestação que decorria no exterior da arena, em favor dos direitos dos animais. Ao que me parece, os defensores dos animais, maioritariamente de quatro patas, não reconhece o talento que alguns possuem no domínio de cravar ferros no lombo de um animal que, nem sequer pediu para ali estar. Claramente, são uns insensíveis, motivo pelo qual não sabem apreciar tal arte!
Sem dúvida, poderia ter continuado a triunfar nas arenas. Mas não, escolhi viver à grande, patrocinado pela pensão de aposentação! Folgado com os quase 300 euros de pensão, os primeiros tempos foram de verdadeira loucura. Comprei uns óculos, um auricular amplificador e uns sapatos ortopédicos2.
2 Fiz um crédito a 40 anos. Como devem calcular, alguém vai levar calote.
Reunidas as condições mínimas, passou a ser só ramboia! Ele era excursões organizadas pela junta, jogatanas no centro de dia, visitas ao centro médico e, às vezes, idas às urgências do hospital. Enfim, era chapa ganha, chapa gasta! Embora que, nos meses em que visitava urgências, sempre amealhava uns trocos. Normalmente, o tempo de espera rondava as 8 horas, pelo que poupava, normalmente, duas refeições.
Para as despesas, contribuía ainda o consumo de drogas. Sim, dessas legais, em que os dealers estão nas farmácias. Agora, apesar de reabilitado, de vez em quando, ainda tenho recaídas. Por vezes, vou para comprar um emplastro e zás, assoma a tentação, acabo por levar uns speeds para a tensão arterial!
Em determinada altura, consciente da necessidade de reduzir despesas, decidi cortar nos bens supérfluos. Deixei de consumir drogas, cortei nas saídas ao médico e alterei o plano de alimentação. Passei a só almoçar às segundas, quartas e sextas. Às terças, quintas e sábados, jantava. Aos domingos, era chá para livrar a tripa dos excessos da semana. Não fora o corpo suplicar pelas drogas e, sugerir o uso de roupa três números abaixo, o plano de poupança haveria sido um sucesso.
Mudando de assunto, hoje, aos noventa, considero que já não tenho nada a perder. Por isso, digo e faço tudo o que apetece. Bom, também não é tanto assim. Para expor o que pretendo, fico sujeito à colaboração da memória. Por vezes, só após muito esgravatar nela, recordo o jantar do dia anterior. Curiosamente, episódios com vinte e, mais anos, continuam fresquinhos. Por exemplo, tenho vivas na memória as palavras proferidas pelo corneteiro antes de ser ferrado com um par de bandarilhas: “Fujam! Ai… Ai… Não as rodes…”. Fazer o que apetece, isso já depende da colaboração da carcaça. Notem que, aos noventa andar a pé sem amparos é, no mínimo, extraordinário. Naturalmente, correr não passa de uma utopia.
Outra característica dos noventa é a escassez de amigos. Não porque se tenha mau feitio, mas porque estes deixaram de envelhecer. Além de triste, esse facto, inviabilizou no meu caso, a iniciação no crime organizado. Em mente, tinha planeado formar uma quadrilha, com interesses no domínio da pilhagem. Notar que, nesta idade, ser meliante, é uma das poucas distracções que integra quase só vantagens. Algumas delas são, por exemplo, a ocupação dos tempos livres, a actividade física, o estímulo mental e, ainda, o retorno financeiro3.
3 Caso existisse, talvez, liquidasse o crédito contraído.
Por outro lado, mesmo que fosse caçado, na improvável, senão impossível, hipótese de ser sujeito a julgamento em tempo útil, uma condenação dificilmente seria cumprida. Ainda que o fosse, era proveitoso, uma vez que, significava que continuava a envelhecer!
Para finalizar, confesso que, por vezes, dou por mim a pensar: “como seria bom voltar a ter setenta anos!”. Parece que tudo no passado era perfeito, tirando o facto de nos trazer o presente. Assim sendo, sugiro que não se lamentem e aproveitem a vida, porque envelhecer é um privilégio e, a alternativa é falecer!