segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Raposa velha


Raposa velha

A mentira, tal como uma combustão, requer três elementos. No caso da aldrabice, serão então: o aldrabão, o aldrabado e o motivo. Confesso que, nunca gostei de trapaceiros! Aliás, nutro por eles um enorme desprezo. Afinal, se há coisa que não aprecio, é concorrência!
No entanto, a concorrência existe e, é numerosa. De facto, um estudo científico revelou que cada pessoa mente em média 200 vezes por dia. Notar que nesta média, por dificuldades de contagem, não são consideradas as mentiras diárias proferidas por pescadores, caçadores e, fundamentalmente, por políticos.
Todavia, o dito estudo permite concluir que todos nós temos um pouco de Pinóquio. Outra conclusão que pode ser retirada é que existem, pelo menos, 467 mil milhões de pecadores no planeta. Isto se levarmos em linha de conta que a mentira é pecado e, que 1/3 da população é cristã.
No meu caso, os primeiros indícios como trapaceiro, surgiram ainda em tenra idade. Lá pelos 10 anitos, iniciei-me como mentiroso do tipo bondoso, ou seja, aldravava esporadicamente para sair de alguma situação menos cómoda. Essas, normalmente, eram as más notas, os atrasos, qualquer coisa que aparecia estragada, etc. Confesso que devido à falta de habilidade, não raras vezes era desmascarado. Lembro uma, entre muitas, dessas falhas. Certa vez, escangalhei um ferro de engomar e, em vez de ficar calado, atirei: “se o ferro estiver estragado, não fui eu!”. Como se não bastasse, juntei ainda: “quando o utilizei estava a funcionar!”. Comportamento típico de um pato-bravo!
Actualmente, ainda é recorrente ter de usar o embuste bondoso. Disso, são exemplo, os falsos elogios do género: “estás tão linda hoje”, “essa roupa parece que foi feita para ti”, “que boa ideia chefe…” ou então “o jantar estava um espectáculo”. Esta classe de mentira serve essencialmente para não melindrar os outros.
Todavia, quando devidamente aplicada, a falsidade bondosa pode inclusivamente conduzir a agradáveis gratificações. Excepção feita nos casos em que são utilizadas afirmações do tipo: “é só mais cinco minutos, estou a chegar…”, “podes ficar descansada…” ou então o clássico “assim que puder ligo-te…”. Obviamente, estas mentiras estão inquinadas à partida, pois são imediatamente identificadas.
Já na adolescência, à aldravice bondosa, juntei a da aparência. Nessa fase, foi de extrema utilidade, uma vez que serviu, fundamentalmente, para fazer parecer aquilo que não era. Comentários sobre as conquistas, as aventuras do dia-a-dia, etc. Resumindo, era usada quando pretendia fazer passar uma imagem de mim próprio, melhor do que a que verdadeiramente acreditava que tinha.
A prática desta política de aparências mostrou-se, no entanto, bastante problemática. Esta estirpe de fraude implica, amiúde, ter que inventar uma infinidade de muletas para a sustentar. Mais grave! Por vezes, surge a necessidade de sê-lo, em vez de parece-lo. Ora, exageros e abusos, tem como consequência normal rombos financeiros ou o desmascaramento do embuste.
Neste contexto, é de evitar usar o logro da aparência sempre que envolva grandes investimentos ou acções consideradas, no mínimo, parvas. É quase suicida, inventar que se tem um mercedes, quando se conduz uma porqueira de dois lugares. Ou então, querer parecer o tipo mais radical da rua, afirmando que nas férias nadou no meio de tubarões assassinos, quando na verdade passou férias na praia fluvial.
Seguindo o natural trajecto de aperfeiçoamento, cheguei a mentiroso compulsivo. Então sim, passei a encontrar desculpa para tudo e, passei a mentir com a maior das convicções. Inclusivamente, passei a acreditar nas próprias mentiras. Disso é exemplo, o desplante de em resposta ao toque da campainha da porta de casa, declarar: “não, de momento não estou! Saí e só volto no final do dia”.
Paralelamente, desenvolvi aptidões no domínio das meias-verdades e da omissão. Estas competências, extremamente úteis, servem para atenuar ocorrências, ou então, para evitar entrar em enredos demasiado tortuosos. Na verdade, existindo a possibilidade de escolha entre omitir e mentir, a primeira poderá garantir o mesmo fim, sempre com menor risco envolvido.
Notar, porém, que a arte do logro só será bem-sucedida, se o intrujão for igualmente hábil no campo da representação. Por mais elaborada e requintada que seja a mentira, pequenos detalhes poderão ditar o falhanço da operação. Pormenores como, colocar as mãos nos bolsos, mexer no cabelo ou olhar para o chão, enquanto se aplica a peta, são falhas comuns. Igualmente habitual, é o erro de reforçar alguma palavra ou frase. Mas pior, com direito a certificado de incompetência é, por exemplo, quando se oferecem presentes fora de datas especiais ou quando escapa à postura normal. Isto é quase tão suspeito como: “se o ferro estiver estragado, não fui eu!”. Nestas condições, o embusteiro além de pato-bravo é ainda otário!
Por outro lado, o intrujão deve possuir a capacidade de identificar situações de aperto. Uma situação comum é, por exemplo, quando uma mulher repete várias vezes uma pergunta. Nesse caso, é quase certo que ela já sabe a verdade e, pior, possivelmente tem provas!
Calma, nem tudo está perdido. Nesta situação, a estratégia a seguir deverá considerar a contenção de dano. Para isso, em jeito de confissão, convém admitir algumas peças do puzzle, omitir outras e, fundamentalmente, alterar o cariz das restantes. Baralhar assuntos, relativizar falhas, sempre de forma expedita e coerente é também uma boa orientação. Dependendo do desempenho resultará, por exemplo, um: “Perdoo-te, mas não esqueço!” ou “Fiquei magoada, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar em ti.". Numa actuação de nível superior, poderá mesmo surgir: “Desculpa ter duvidado, mas tudo apontava para isso!”.
Atingido tal patamar de excelência, estamos perante aquilo que poderemos apelidar de raposa velha. Este ser, é exímio a utilizar o embuste em proveito próprio, qualquer que seja o motivo. Manhoso por natureza, é bastante ágil com as palavras, é credível e expedito de raciocínio. Quando em plena forma, resulta algo difícil o seu desmascaramento.

Todavia, é possível, mas arriscado, aldravar uma raposa. Perante tal situação, se a raposa descobrir, oculta que sabe do embuste e aguarda, serenamente, o momento certo para entalar o aldravão. Em caso algum, esquece! Não que seja vingativo, mas porque, não gosta de ficar a dever nada a ninguém!