Raposa velha
A
mentira, tal como uma combustão, requer três elementos. No caso da aldrabice, serão
então: o aldrabão, o aldrabado e o motivo. Confesso que, nunca gostei de trapaceiros!
Aliás, nutro por eles um enorme desprezo. Afinal, se há coisa que não aprecio,
é concorrência!
No
entanto, a concorrência existe e, é numerosa. De facto, um estudo científico revelou
que cada pessoa mente em média 200 vezes por dia. Notar que nesta média, por
dificuldades de contagem, não são consideradas as mentiras diárias proferidas
por pescadores, caçadores e, fundamentalmente, por políticos.
Todavia,
o dito estudo permite concluir que todos nós temos um pouco de Pinóquio. Outra
conclusão que pode ser retirada é que existem, pelo menos, 467 mil milhões de
pecadores no planeta. Isto se levarmos em linha de conta que a mentira é pecado
e, que 1/3 da população é cristã.
No
meu caso, os primeiros indícios como trapaceiro, surgiram ainda em tenra idade.
Lá pelos 10 anitos, iniciei-me como mentiroso do tipo bondoso, ou seja,
aldravava esporadicamente para sair de alguma situação menos cómoda. Essas,
normalmente, eram as más notas, os atrasos, qualquer coisa que aparecia
estragada, etc. Confesso que devido à falta de habilidade, não raras vezes era
desmascarado. Lembro uma, entre muitas, dessas falhas. Certa vez, escangalhei
um ferro de engomar e, em vez de ficar calado, atirei: “se o ferro estiver estragado, não fui eu!”. Como se não bastasse, juntei
ainda: “quando o utilizei estava a
funcionar!”. Comportamento típico de um pato-bravo!
Actualmente,
ainda é recorrente ter de usar o embuste bondoso. Disso, são exemplo, os falsos
elogios do género: “estás tão linda hoje”,
“essa roupa parece que foi feita para ti”, “que boa ideia chefe…” ou então “o
jantar estava um espectáculo”. Esta classe de mentira serve essencialmente
para não melindrar os outros.
Todavia,
quando devidamente aplicada, a falsidade bondosa pode inclusivamente conduzir a
agradáveis gratificações. Excepção feita nos casos em que são utilizadas
afirmações do tipo: “é só mais cinco
minutos, estou a chegar…”, “podes
ficar descansada…” ou então o clássico “assim
que puder ligo-te…”. Obviamente, estas mentiras estão inquinadas à partida,
pois são imediatamente identificadas.
Já
na adolescência, à aldravice bondosa, juntei a da aparência. Nessa fase, foi de
extrema utilidade, uma vez que serviu, fundamentalmente, para fazer parecer
aquilo que não era. Comentários sobre as conquistas, as aventuras do dia-a-dia,
etc. Resumindo, era usada quando pretendia fazer passar uma imagem de mim
próprio, melhor do que a que verdadeiramente acreditava que tinha.
A
prática desta política de aparências mostrou-se, no entanto, bastante
problemática. Esta estirpe de fraude implica, amiúde, ter que inventar uma infinidade
de muletas para a sustentar. Mais grave! Por vezes, surge a necessidade de sê-lo,
em vez de parece-lo. Ora, exageros e abusos, tem como consequência normal
rombos financeiros ou o desmascaramento do embuste.
Neste
contexto, é de evitar usar o logro da aparência sempre que envolva grandes
investimentos ou acções consideradas, no mínimo, parvas. É quase suicida, inventar
que se tem um mercedes, quando se conduz uma porqueira de dois lugares. Ou então, querer parecer o tipo mais
radical da rua, afirmando que nas férias nadou no meio de tubarões assassinos,
quando na verdade passou férias na praia fluvial.
Seguindo
o natural trajecto de aperfeiçoamento, cheguei a mentiroso compulsivo. Então
sim, passei a encontrar desculpa para tudo e, passei a mentir com a maior das
convicções. Inclusivamente, passei a acreditar nas próprias mentiras. Disso é
exemplo, o desplante de em resposta ao toque da campainha da porta de casa, declarar:
“não, de momento não estou! Saí e só
volto no final do dia”.
Paralelamente,
desenvolvi aptidões no domínio das meias-verdades e da omissão. Estas competências,
extremamente úteis, servem para atenuar ocorrências, ou então, para evitar entrar
em enredos demasiado tortuosos. Na verdade, existindo a possibilidade de
escolha entre omitir e mentir, a primeira poderá garantir o mesmo fim, sempre
com menor risco envolvido.
Notar,
porém, que a arte do logro só será bem-sucedida, se o intrujão for igualmente
hábil no campo da representação. Por mais elaborada e requintada que seja a mentira,
pequenos detalhes poderão ditar o falhanço da operação. Pormenores como, colocar
as mãos nos bolsos, mexer no cabelo ou olhar para o chão, enquanto se aplica a
peta, são falhas comuns. Igualmente habitual, é o erro de reforçar alguma palavra
ou frase. Mas pior, com direito a certificado de incompetência é, por exemplo, quando
se oferecem presentes fora de datas especiais ou quando escapa à postura
normal. Isto é quase tão suspeito como: “se
o ferro estiver estragado, não fui eu!”. Nestas condições, o embusteiro
além de pato-bravo é ainda otário!
Por
outro lado, o intrujão deve possuir a capacidade de identificar situações de
aperto. Uma situação comum é, por exemplo, quando uma mulher repete várias
vezes uma pergunta. Nesse caso, é quase certo que ela já sabe a verdade e,
pior, possivelmente tem provas!
Calma,
nem tudo está perdido. Nesta situação, a estratégia a seguir deverá considerar
a contenção de dano. Para isso, em jeito de confissão, convém admitir algumas
peças do puzzle, omitir outras e,
fundamentalmente, alterar o cariz das restantes. Baralhar assuntos, relativizar
falhas, sempre de forma expedita e coerente é também uma boa orientação.
Dependendo do desempenho resultará, por exemplo, um: “Perdoo-te, mas não esqueço!” ou
“Fiquei magoada, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar
em ti.". Numa actuação de nível superior, poderá mesmo surgir: “Desculpa ter duvidado, mas tudo apontava
para isso!”.
Atingido
tal patamar de excelência, estamos perante aquilo que poderemos apelidar de
raposa velha. Este ser, é exímio a utilizar o embuste em proveito próprio,
qualquer que seja o motivo. Manhoso por natureza, é bastante ágil com as
palavras, é credível e expedito de raciocínio. Quando em plena forma, resulta algo
difícil o seu desmascaramento.
Todavia,
é possível, mas arriscado, aldravar uma raposa. Perante tal situação, se a
raposa descobrir, oculta que sabe do embuste e aguarda, serenamente, o momento
certo para entalar o aldravão. Em caso algum, esquece! Não que seja vingativo, mas
porque, não gosta de ficar a dever nada a ninguém!