quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Patriota

Patriota

Desde já, que fique bem claro que a parte do patriota só se aplica a actividades de gestão do dinheiro da pátria e nunca, em caso algum, à digamos pouco inteligente actividade de lançar ou fugir de projécteis, seja lá qual for a sua espécie.
Posto isto, passando ao objectivo primeiro desta missiva, que é… e vejam bem o espirito de sacrifício… a candidatura voluntária para qualquer posto de gestão pública, a preço de saldo. Não, não perdi a cabeça, apenas achei que chegou o momento de retribuir à pátria tudo aquilo com que Ela me presenteou, incluindo o imposto sobre o ar respirado. Assim, sem reservas sobre o tipo de entidade, ponho-me ao dispor para assumir qualquer cargo de administração, com preferência por bancos.
Do currículo académico, consta quase uma licenciatura em ciências exactas da futurologia em economia, obtida numa qualquer Universidade de Verão. Além disso, o dito enumera inúmeros “works in shops” e uma detenção por manuseamento indevido de capital alheio.
Mais, disponibilizo, desde já, para consulta e publicação em todos os locais, incluindo colunas de necrologia, a declaração: Modelo nº 1649 - Declaração de rendimentos, património e cargos sociais do pretendente a titular de cargo político e/ou equiparado.

CARGO (artigo 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de abril, na redação da Lei n.º 25/95, de 18 de agosto e da Lei n.º 38/10, de 2 de setembro)

Qualquer um, desde que bem remunerado.

FACTO DETERMINANTE DA DECLARAÇÃO (artigos 1.º e 2.º n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 4/83, na redação da Lei n.º 25/95, de 18 de agosto e da Lei n.º 38/10, de 2 de setembro):

Início de funções em: Espero que em breve
Cessação de funções em: Será de evitar
Atualização em: Apenas de ordenado e, caso seja em alta!

IDENTIFICAÇÃO DO DECLARANTE
Nome completo – Passo os Dias Aguiar
Profissão principal: Investidor, ramo de especialização: investimentos danosos.
Estado civil: Junto, sempre que possível.

CAPíTULO I - RENDIMENTOS BRUTOS, PARA EFEITOS DA LIQUIDAÇÃO DO IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DAS PESSOAS SINGULARES

Muito poucachinhos, pelo menos os declarados.

CAPíTULO II - ATIVO PATRIMONIAL
II-A - PATRIMÓNIO IMOBILIÁRIO

Tudo penhorado. Familiares próximos, sem trabalho conhecido, detêm todo o património.

II-B - QUOTAS, AÇÕES, PARTICIPAÇÕES OU OUTRAS PARTES SOCIAIS DO CAPITAL DE SOCIEDADES CIVIS OU COMERCIAIS

Quotas só as do clube de sueca e, com quatro meses em atraso

II-C - DIREITOS SOBRE BARCOS, AERONAVES OU VEÍCULOS AUTOMÓVEIS

Bens a declarar: veículo de três rodas (vulgo carrinho de mão) destinado ao transporte de mercadorias. Motorizada Sachs V5 e um papagaio de papel.

II-D - CARTEIRAS DE TÍTULOS, CONTAS BANCÁRIAS A PRAZO E APLICAÇÕES FINANCEIRAS EQUIVALENTES

Aplicações financeiras só em raspadinhas.

II-E - CONTAS BANCÁRIAS À ORDEM E DIREITOS DE CRÉDITO, DE VALOR SUPERIOR A 50 SALÁRIOS MÍNIMOS

É capaz de haver numa qualquer offshore, mas não tenho nada a ver com isso!

II-F - OUTROS ELEMENTOS DO ATIVO PATRIMONIAL

Um porco mealheiro carregado de negras.

CAPíTULO III - PASSIVO
DÉBITOS QUE ONERAM O PATRIMÓNIO DO DECLARANTE

Desde o caderno do merceeiro até à do fisco, consto de todas as listas. A política seguida é não descriminar ninguém!


Sem mais, fico a aguardar serenamente pelo tacho!

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O dinheiro não é tudo

O dinheiro não é tudo

Desde rapazola que detesto tudo aquilo que dá trabalho. Afinal, se algo é difícil, é porque não vale a pena ser feito! Concluindo, resulta sempre melhor ver coisas, que fazê-las. Esta antipatia pelo trabalho surgiu logo na primária, por ocasião do acolhimento de umas reguadas, consequência do erro ortográfico cometido a escrever a palavra trabalho. Daí em diante, só de pensar em tal coisa, desenvolvo imediatamente urticária.
Todavia, findados os estudos e fortemente coagido por familiares, lá tive de ir vergar a mola. Teve de ser! Mas, até enveredar por tão penoso caminho, escutei de tudo! Ele foram conselhos de que sem trabalho não se consegue nada, que trabalhar dá saúde e faz crescer, eu sei lá... Entre as frases feitas, usadas para me impingirem tal suplício, a mais rebuscada de todas era “O único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário”. Ora, o problema é que no mesmo manual, trabalho é também sinónimo de fadiga. Ou seja, é de evitar!
Contudo, na falta de alternativa, tive mesmo de ceder. Para ajudar na escolha da actividade, recorri a um profissional da área da psicologia. Após detalhado estudo vocacional1, o clínico haveria de concluir que além da ausência de qualquer vocação, o meu ser juntava múltiplas personalidades. Ora, como nós não concordamos com tal diagnóstico, resolvemos decidir por nós próprios!

1 Até uns testes fiz… acho que se chamavam pirotécnicos.

A preferência acabaria por recair sobre o sector alimentar. Vai daí, fiz carreira como provador de comida para animais. Até nem ganhava mal, não fora metade do valor auferido ser imediatamente canalizado para impostos. Ainda assim, nunca passava fome. Não era mau!
Nas viagens para o trabalho, volta e meia, passava por mim um veículo preto topo de gama. Nessa altura, quase imediatamente, surgia-me no pensamento: “que tipo trabalhador… até deve trabalhar aos sábados à tarde para conseguir ter um carro assim!”. Todavia, para escapar à própria frustração, obrigava-me a acrescentar a tal reflexão o seguinte: “Sou pobre, mas honrado. O dinheiro não é tudo!”. Afinal de contas, o dinheiro não é mesmo tudo, há também, por exemplo, o ouro, os diamantes e os bens.
Ainda assim, movido pela ambição de mercar um carro, cujos pneus fossem mais caros que o atacado do actual, resolvi acumular outro emprego. Comecei a trabalhar todos os dias do mês, incluindo sábados à tarde. Finalmente, estavam reunidas as condições para a compra.
Aconselhado por vários, desloquei-me ao afamado stand do Bolacha. Nessa superfície comercial, era vasto o leque de viaturas… quase quatro. Mais, estas eram todas da máxima confiança. De facto, o mestre Bolacha apenas transacionava veículos cujos anteriores proprietários fossem, ou tivessem sido, padres ou professoras.
Escolhida a viatura, foi só tratar do crédito2. A opção não poderia ter sido mais feliz, além da cor, preto fosco3, do autocolante no vidro traseiro a dizer Alpine, o dito cujo até rádio tinha!

2 Este por sinal muito jeitoso. A soma dos dois vencimentos, quase que chegava para a mensalidade.
3 Questionado sobre a falta de brilho da cor, o mestre Bolacha garantiu que as pinturas modernas eram assim, isto para evitar ficarem ressequidas pelo sol.

Todavia, preocupações ambientais e, alguns detalhes relacionados com a liquidação da mensalidade do crédito, ditaram a prematura retoma da viatura. Hoje, a bem da saúde e do ambiente, desloco-me a pé. Na verdade, já antes o fazia amiúdas vezes. Para isso, contribuíam as constantes deslocações à oficina, motivadas pelas indispensáveis afinações, nomeadamente, a nível do funcionar.
Liberto de encargos, resolvi abandonar as ocupações assalariadas e candidatar-me a uma vaga no fundo de desemprego. Finalmente, passaria a receber o vencimento a tempo e horas. Por outro lado, o montante passaria a ser compatível com as responsabilidades.
Beneficiando do tempo livre, resolvi frequentar as formações disponibilizadas pelo referido centro. A título de exemplo, recordo um dos cursos que frequentei, intitulado: caça e pesca, uma abordagem empreendedora. Além de engrossar o nível de aptidões, mais importante ainda, era o facto de frequentar tais cursos dava direito a subsídio de repasto.
Enfim, não fora pelas constantes propostas de trabalho e, provavelmente, este teria sido o período mais proveitoso da minha vida. De facto, sempre que surgia uma vaga para um qualquer cargo compatível com as habilitações, era um sobressalto. Isto, porque alguns dos potenciais empregadores, insistiam que dispunha das condições necessárias e suficientes para o cargo. Ainda assim, embora por vezes a custo, lá os fui demovendo de tal ideia peregrina
Com o decorrer do tempo, percebi que este era o meu verdadeiro talento, viver de subsídios! A habilidade para a coisa era tanta que, após findado o subsídio de desemprego, resolvi candidatar-me a um rendimento mínimo qualquer coisa.
Além disso, preocupado com o envelhecimento da população e, talvez também com o valor do abono de família, procurei ampliar o agregado familiar. Todavia, esta inquietação com as questões demográficas haveriam de resultar em problemas de espaço, no luxuoso lar de uma assoalhada. Questão essa, contudo, prontamente resolvida através da candidatura a uma habitação social. Actualmente, lá em casa oito frequentam a escola e dez vivem de subsídios. Afinal, a formação é uma aposta de futuro, desde que sustentada por bolsas, claro está!

Agora, enquanto aguardo pela reforma, decidi tornar-me investidor, área das raspadinhas. Além de não depender das flutuações do mercado, a negociação de tais títulos é feita no momento. Ainda um destes dias, apenas com dois euros, obtive um retorno imediato de 20 minis. E assim vou levando a vida…