terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Que se lixe o colesterol

Que se lixe o colesterol

Este é o relatado de uma das mais esforçadas passagens da minha existência. Em tempos, fui arrolado para um ginásio! Sim, esse sítio dantesco em que a malta, sem motivo aparente, faz força e transpira. Todavia, não pensem que a motivação para tal desvario tenha sido sacar umas garinas! Não, não foi! O verdadeiro incentivo, foi um esteroide de seu nome colesterol.
Nesta aventura, o desastre assomou logo nos preparativos do equipamento. Pela primeira vez na vida, comprei uns ténis e uns calções para usar nessa actividade, designada de desporto. Até então, apetrechos desse calibre somente tinham sido adquiridos com base na aparência, uma vez que a sua serventia se resumia a idas às compras ou a esplanadas aos sábados à tarde. Além disso, comprei uma t-shirt e uma espécie de bracelete para o Iphone1.

1. Esta foi só para o estilo, uma vez que não possuo tal equipamento.

Em relação à t-shirt, era daquelas com um generoso decote e alças finas. Não fora eu um tipo, digamos esguio, desprovido de qualquer músculo e a dita cuja até teria assentado que nem uma luva. Bom, não foi de todo o caso… Mas pelo menos dava nas vistas!
Para completar o arranjo, adquiri uma garrafa, mas que afinal em linguagem de ginásio se chama shaker. Em relação ao púcaro, shaker, fui confrontado com o facto de ser algo démodé atestar o dito com água. Vai daí, foi realizado um estudo de opinião sobre a mistela mais adequada para atestar o cântaro. Entre as candidatas, estavam todo o tipo de mistelas, desde bebidas energéticas, isotónicas, chás e batidos de frutas. Tudo servia, desde que não fosse água! Após detalhada análise das várias hipóteses, optou-se pelo morangueiro fresquinho. Sendo ele também um sumo, é energético e além disso promove a boa disposição!
Chegado a este ponto, apenas carecia eleger o local para a prática desportiva. A escolha acabou por recair sobre o afamado Health Club, fiat.nessa e não corras. Além de atestado de geringonças, que tecnicamente são designadas de máquinas, tinha balneários com chuveiros e tudo!
Oficializado o alistamento, fui convocado para a avaliação física. Vai daí aparece-me pela frente um sujeito com uma t-shirt fluorescente a dizer PT. Pensei logo: “Oh diabo, até nos ginásios estes tipos andam a impingir a TV cabo!”. Mas, afinal não! O individuo não era da PT, mas sim uma espécie de perito em ginástica com designação em estrangeiro, Personal Trainer! No que respeita à apreciação do estado do esqueleto, a coisa não correu lá assim muito bem… Aliás, não fora o estabelecimento ter desfibrilhador e a coisa teria corrido mal, mesmo muito mal! Mas bom, tal como já sucedera na inspecção militar, fui considerado apto.
No teatro de operações, o equipamento disponível era variado e em quantidade. Lá havia de tudo, ele era bicicletas sem rodas, tapetes que faziam as pessoas andar sem sair do sítio, uma espécie de espreguiçadeiras com umas barras laterais e por ai fora…
Por sua vez, os operacionais no terreno, apresentavam aspeto e atitudes algo estranhas. Alguns havia que aparentavam ter sido insuflados, outros que parecia ter acabado de cruzar um qualquer deserto em dia de sol… tal era o grau de transpiração. Mas, mais estranho, eram os sons que ecoavam pelo recinto. Uma espécie de grunhidos, que num primeiro momento, julguei tratar-se de uma sessão de tortura. Mas não! Afinal era só um individuo, que sabe-se lá porque carga-de-água, estava enfiado debaixo de uma barra apinhada de discos, enquanto gritava para ele próprio: “És o maior…Vai só mais uma…Tu consegues!” Olha, a fazer força também eu! Todavia, na minha modesta opinião, um ser que além de se auto fustigar, fala sozinho, é claramente um caso de estudo. Além do mais, levando em consideração o grau de dilatação das veias, estará eminente um qualquer acidente vascular ou então tem um garrote apertado à cintura.
Após uns minutos a ambientar, lá iniciei a actividade física. Passados 5 minutos de árduo treino, tratei de fazer uma pausa para repor os níveis de nicotina e publicar uma selfie no Trombasbook com a legenda: “a dar no duro”.
Entretanto, amontei-me na máquina designada de passadeira, facto que se revelou uma escolha acertada, uma vez que ao lado desenvolvia actividade aquilo a que podemos chamar de um bom incentivo à prática desportiva! Empurrado por uma postura, chamemos-lhe apenas de exibicionista2, vai de botar a passadeira na velocidade máxima. Tal atitude, no mínimo parva, viria apenas a custar três hematomas e um apagão. Ainda assim, nem tudo foi mau, sempre consegui o número de telefone do incentivo! A compaixão tem destas coisas…

2. Isto para evitar de meter a estupidez ao barulho.

Terminado o treino, recolhi em ombros ao balneário. Tal passagem, não se deveu a actos heroicos, mas sim ao facto de não ter recuperado totalmente os sentidos. Chegado ao balneário, o que deveria ser um retiro de convalescença, apresentava, porém, contornos dantescos! O balneário mais parecia uma praia naturista, sem a atenuante de ser mista. O espaço estava infestado! Um considerável número de criaturas, com as miudezas a arejar, desenvolvia todo o tipo de actividades, deixando para outras núpcias o trajamento.

Conclusão, que se lixe o colesterol! Chouriço só de porco preto! 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Patriota

Patriota

Desde já, que fique bem claro que a parte do patriota só se aplica a actividades de gestão do dinheiro da pátria e nunca, em caso algum, à digamos pouco inteligente actividade de lançar ou fugir de projécteis, seja lá qual for a sua espécie.
Posto isto, passando ao objectivo primeiro desta missiva, que é… e vejam bem o espirito de sacrifício… a candidatura voluntária para qualquer posto de gestão pública, a preço de saldo. Não, não perdi a cabeça, apenas achei que chegou o momento de retribuir à pátria tudo aquilo com que Ela me presenteou, incluindo o imposto sobre o ar respirado. Assim, sem reservas sobre o tipo de entidade, ponho-me ao dispor para assumir qualquer cargo de administração, com preferência por bancos.
Do currículo académico, consta quase uma licenciatura em ciências exactas da futurologia em economia, obtida numa qualquer Universidade de Verão. Além disso, o dito enumera inúmeros “works in shops” e uma detenção por manuseamento indevido de capital alheio.
Mais, disponibilizo, desde já, para consulta e publicação em todos os locais, incluindo colunas de necrologia, a declaração: Modelo nº 1649 - Declaração de rendimentos, património e cargos sociais do pretendente a titular de cargo político e/ou equiparado.

CARGO (artigo 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de abril, na redação da Lei n.º 25/95, de 18 de agosto e da Lei n.º 38/10, de 2 de setembro)

Qualquer um, desde que bem remunerado.

FACTO DETERMINANTE DA DECLARAÇÃO (artigos 1.º e 2.º n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 4/83, na redação da Lei n.º 25/95, de 18 de agosto e da Lei n.º 38/10, de 2 de setembro):

Início de funções em: Espero que em breve
Cessação de funções em: Será de evitar
Atualização em: Apenas de ordenado e, caso seja em alta!

IDENTIFICAÇÃO DO DECLARANTE
Nome completo – Passo os Dias Aguiar
Profissão principal: Investidor, ramo de especialização: investimentos danosos.
Estado civil: Junto, sempre que possível.

CAPíTULO I - RENDIMENTOS BRUTOS, PARA EFEITOS DA LIQUIDAÇÃO DO IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DAS PESSOAS SINGULARES

Muito poucachinhos, pelo menos os declarados.

CAPíTULO II - ATIVO PATRIMONIAL
II-A - PATRIMÓNIO IMOBILIÁRIO

Tudo penhorado. Familiares próximos, sem trabalho conhecido, detêm todo o património.

II-B - QUOTAS, AÇÕES, PARTICIPAÇÕES OU OUTRAS PARTES SOCIAIS DO CAPITAL DE SOCIEDADES CIVIS OU COMERCIAIS

Quotas só as do clube de sueca e, com quatro meses em atraso

II-C - DIREITOS SOBRE BARCOS, AERONAVES OU VEÍCULOS AUTOMÓVEIS

Bens a declarar: veículo de três rodas (vulgo carrinho de mão) destinado ao transporte de mercadorias. Motorizada Sachs V5 e um papagaio de papel.

II-D - CARTEIRAS DE TÍTULOS, CONTAS BANCÁRIAS A PRAZO E APLICAÇÕES FINANCEIRAS EQUIVALENTES

Aplicações financeiras só em raspadinhas.

II-E - CONTAS BANCÁRIAS À ORDEM E DIREITOS DE CRÉDITO, DE VALOR SUPERIOR A 50 SALÁRIOS MÍNIMOS

É capaz de haver numa qualquer offshore, mas não tenho nada a ver com isso!

II-F - OUTROS ELEMENTOS DO ATIVO PATRIMONIAL

Um porco mealheiro carregado de negras.

CAPíTULO III - PASSIVO
DÉBITOS QUE ONERAM O PATRIMÓNIO DO DECLARANTE

Desde o caderno do merceeiro até à do fisco, consto de todas as listas. A política seguida é não descriminar ninguém!


Sem mais, fico a aguardar serenamente pelo tacho!

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O dinheiro não é tudo

O dinheiro não é tudo

Desde rapazola que detesto tudo aquilo que dá trabalho. Afinal, se algo é difícil, é porque não vale a pena ser feito! Concluindo, resulta sempre melhor ver coisas, que fazê-las. Esta antipatia pelo trabalho surgiu logo na primária, por ocasião do acolhimento de umas reguadas, consequência do erro ortográfico cometido a escrever a palavra trabalho. Daí em diante, só de pensar em tal coisa, desenvolvo imediatamente urticária.
Todavia, findados os estudos e fortemente coagido por familiares, lá tive de ir vergar a mola. Teve de ser! Mas, até enveredar por tão penoso caminho, escutei de tudo! Ele foram conselhos de que sem trabalho não se consegue nada, que trabalhar dá saúde e faz crescer, eu sei lá... Entre as frases feitas, usadas para me impingirem tal suplício, a mais rebuscada de todas era “O único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário”. Ora, o problema é que no mesmo manual, trabalho é também sinónimo de fadiga. Ou seja, é de evitar!
Contudo, na falta de alternativa, tive mesmo de ceder. Para ajudar na escolha da actividade, recorri a um profissional da área da psicologia. Após detalhado estudo vocacional1, o clínico haveria de concluir que além da ausência de qualquer vocação, o meu ser juntava múltiplas personalidades. Ora, como nós não concordamos com tal diagnóstico, resolvemos decidir por nós próprios!

1 Até uns testes fiz… acho que se chamavam pirotécnicos.

A preferência acabaria por recair sobre o sector alimentar. Vai daí, fiz carreira como provador de comida para animais. Até nem ganhava mal, não fora metade do valor auferido ser imediatamente canalizado para impostos. Ainda assim, nunca passava fome. Não era mau!
Nas viagens para o trabalho, volta e meia, passava por mim um veículo preto topo de gama. Nessa altura, quase imediatamente, surgia-me no pensamento: “que tipo trabalhador… até deve trabalhar aos sábados à tarde para conseguir ter um carro assim!”. Todavia, para escapar à própria frustração, obrigava-me a acrescentar a tal reflexão o seguinte: “Sou pobre, mas honrado. O dinheiro não é tudo!”. Afinal de contas, o dinheiro não é mesmo tudo, há também, por exemplo, o ouro, os diamantes e os bens.
Ainda assim, movido pela ambição de mercar um carro, cujos pneus fossem mais caros que o atacado do actual, resolvi acumular outro emprego. Comecei a trabalhar todos os dias do mês, incluindo sábados à tarde. Finalmente, estavam reunidas as condições para a compra.
Aconselhado por vários, desloquei-me ao afamado stand do Bolacha. Nessa superfície comercial, era vasto o leque de viaturas… quase quatro. Mais, estas eram todas da máxima confiança. De facto, o mestre Bolacha apenas transacionava veículos cujos anteriores proprietários fossem, ou tivessem sido, padres ou professoras.
Escolhida a viatura, foi só tratar do crédito2. A opção não poderia ter sido mais feliz, além da cor, preto fosco3, do autocolante no vidro traseiro a dizer Alpine, o dito cujo até rádio tinha!

2 Este por sinal muito jeitoso. A soma dos dois vencimentos, quase que chegava para a mensalidade.
3 Questionado sobre a falta de brilho da cor, o mestre Bolacha garantiu que as pinturas modernas eram assim, isto para evitar ficarem ressequidas pelo sol.

Todavia, preocupações ambientais e, alguns detalhes relacionados com a liquidação da mensalidade do crédito, ditaram a prematura retoma da viatura. Hoje, a bem da saúde e do ambiente, desloco-me a pé. Na verdade, já antes o fazia amiúdas vezes. Para isso, contribuíam as constantes deslocações à oficina, motivadas pelas indispensáveis afinações, nomeadamente, a nível do funcionar.
Liberto de encargos, resolvi abandonar as ocupações assalariadas e candidatar-me a uma vaga no fundo de desemprego. Finalmente, passaria a receber o vencimento a tempo e horas. Por outro lado, o montante passaria a ser compatível com as responsabilidades.
Beneficiando do tempo livre, resolvi frequentar as formações disponibilizadas pelo referido centro. A título de exemplo, recordo um dos cursos que frequentei, intitulado: caça e pesca, uma abordagem empreendedora. Além de engrossar o nível de aptidões, mais importante ainda, era o facto de frequentar tais cursos dava direito a subsídio de repasto.
Enfim, não fora pelas constantes propostas de trabalho e, provavelmente, este teria sido o período mais proveitoso da minha vida. De facto, sempre que surgia uma vaga para um qualquer cargo compatível com as habilitações, era um sobressalto. Isto, porque alguns dos potenciais empregadores, insistiam que dispunha das condições necessárias e suficientes para o cargo. Ainda assim, embora por vezes a custo, lá os fui demovendo de tal ideia peregrina
Com o decorrer do tempo, percebi que este era o meu verdadeiro talento, viver de subsídios! A habilidade para a coisa era tanta que, após findado o subsídio de desemprego, resolvi candidatar-me a um rendimento mínimo qualquer coisa.
Além disso, preocupado com o envelhecimento da população e, talvez também com o valor do abono de família, procurei ampliar o agregado familiar. Todavia, esta inquietação com as questões demográficas haveriam de resultar em problemas de espaço, no luxuoso lar de uma assoalhada. Questão essa, contudo, prontamente resolvida através da candidatura a uma habitação social. Actualmente, lá em casa oito frequentam a escola e dez vivem de subsídios. Afinal, a formação é uma aposta de futuro, desde que sustentada por bolsas, claro está!

Agora, enquanto aguardo pela reforma, decidi tornar-me investidor, área das raspadinhas. Além de não depender das flutuações do mercado, a negociação de tais títulos é feita no momento. Ainda um destes dias, apenas com dois euros, obtive um retorno imediato de 20 minis. E assim vou levando a vida… 

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Ingresso para o purgatório

Ingresso para o purgatório

Além de devoto, sempre fui um praticante assíduo de crenças. Ainda petiz fui angariado para a catequese. Além disso, tornei-me sócio de várias congregações, dos mais variados credos. Era aquilo a que se pode chamar um poliglota das religiões.
Nesse contexto, participava em todo o tipo de actividades, fossem elas ajuntamentos para atestar milagres, peregrinações, voluntariado, pagamento de promessas, automutilações ou mesmo evangelização de proximidade, nomeadamente em emboscadas porta-a-porta. Sazonalmente, praticava também boas acções em prol da comunidade. Contudo, este tipo de actividade nem sempre se revelava de fácil concretização. Neste domínio, refere-se a título de exemplo, o caso do auxílio prestado a um idoso para atravessar a rua. À partida tudo parece simples, não fora o velho não querer atravessar e, para agravar a situação, ter em sua posse uma muleta ou bengala.
Por seguir tão à risca todas as leis divinas, poder-se-á dizer que o Paraíso estava à distância de uma vida. Provavelmente, não teria direito a reforma, mas o esplendoroso relvado do Éden estava garantido. Ou pelo menos assim o julgava. Todavia, num fatídico dia tudo se alterou. Uma simples ida às compras acabaria por alterar irremediavelmente o destino da derradeira viagem. O trajecto da última viagem acabaria por ser alterado, aventando comigo para o Purgatório. Num ápice, de fiel devoto, passei a humilde servo do Mafarrico. A luxúria, a gula, a avareza, a ira, a soberba, a vaidade e a preguiça, passaram a nortear os meus caminhos.
Na origem de tal tragédia, esteve a simples aquisição de um sofá! Esse objecto, seja ele de dois, três ou mais lugares, do tipo clássico ou contemporâneo, é uma criação maligna. Acreditem! Independentemente da raça, tratam de cravar um espirito pecaminoso nos seus proprietários, logo na hora da compra. Ora vejam. No momento do pagamento, por pura sovinice regateia-se um desconto de 10 euros em 1000. Depois, acaba-se por levar para casa um de imitação de pele, só para poupar mais 20 euros. Ou seja, a avareza a despontar.
Depois, assim que o sofá assenta praça lá em casa, trata-se de mostrá-lo a todo e qualquer individuo que apareça, seja por convite ou autorrecreação. Se isto não é puro exibicionismo é, no mínimo soberba! Vaidade que se agudiza quando, arrogantemente se comenta: “o meu sofá além de giro é bem mais confortável que o teu!”. Embora aqui, possa estar também alguma inveja à mistura, uma vez que o sofá do dito camarada é em pele genuína e tem chaise long.
Contudo, a total desconsideração pelas leis divinas, apenas atingiu o seu esplendor quando pequenas estadias, sentado a ver a bola ou programas culturais do género “Drama Total – All Stars”, se transformam em esticado ao comprido tardes inteiras, muitas das vezes a enfardar sandes e a destilar minis.
Além de patrocinar a preguiça e a gula, casos há em que a raiva e inveja poderão também assomar. Exemplo disso, é quando já pronto para iniciar uma estadia na horizontal, se é confrontado com o sofá já ocupado por outro habitante ou visitante. Isto, a não ser, que a visita seja a Paulinha, a vizinha do 3º esquerdo, ou equivalente. Nesse caso, a ira desaparece para dar lugar, nomeadamente, à luxúria.
Estava tudo perdido… Em desespero de causa, resolvi atirar o dito cujo pela janela1 e apelar aos poderes divinos para me livrar de tamanho infortúnio. Bom, caso fosse possível, mantendo a parte da vizinha do 3º esquerdo. A oferenda apalavrada foi uma peregrinação, a pé e por etapas, até centro geodésico de Portugal, situado na Serra da Melriça.

1O sofá, por ser tão malévolo, terminou a viagem desde o quatro andar no tejadilho do meu carro.

Estabelecido o compromisso, iniciaram-se os preparativos para a ousada expedição. Alugada a furgonete de caixa aberta para dar assistência e adquiridos os mantimentos, foi repartido o percurso em etapas2. Além disso, no sentido de envolver a comunidade em geral, especialmente os indivíduos com défice de bom senso, foram abertas inscrições para o evento.

2Nesta fase surgiram algumas dificuldades, nomeadamente o facto do ponto de partida se situar a 15 minutos do destino.

Esgotado o prazo para os alistamentos, foram contabilizados um total de cinco peregrinos, dois espectadores e o Francês3. Esta última personagem integrou a caravana amontado na sua Casal de 5. Ao serviço do jornal da paróquia, como repórter de som e imagem, o Francês teve a seu cargo a cobertura do evento. Além disso, ficou também responsável pela organização dos convívios de final de etapa. Aqui será de salientar a superior competência com que desempenhou as funções de festeiro. Para algumas etapas, conseguiu consagrados artistas da cantoria, alguns deles bastante jeitosos. No seu espetáculo, utilizavam alta tecnologia, coisas do tipo playback e dançarinas com saias tipo cinto. Além disso, o fecho das etapas era sempre abrilhantado com sandes de courato e inundações de tinto.

3O Alfredo, mais conhecido por Francês, obtivera tal alcunha quando há uns anos decidira emigrar para França. Contudo, devido a alguma desorientação e à sua fraca aptidão para as letras, acabaria por ir parar a Itália, onde se estabeleceu a vender laranjada. fase surgiram algumas dificuldades, nomeadamente o facto do ponto de partida se situar a 15 minutos do destino.

Chegado o dia da partida, foi cumprido o prólogo a ligar o portão de casa à taberna do Gatuno4, numa tirada de quase 500 metros. Debaixo de um sol escaldante, a etapa inicial foi cumprida, já com saudades de casa e com bolhas nos pés. No dia seguinte, com dores em todos os membros e, escapando à tentação de pedir boleia, foi levada de vencida a especial cronometrada de quase 2 Km, que ligava Vila de Rei à Serra da Melriça. Na origem de tal sucesso, esteve a perseguição movida por um canito raivoso.

4A taberna do gatuno, rotulada por muitos como o berço dos bares culturais, albergava na galeria de acesso ao templo gastronómico de ovos verdes e jaquinzinhos de escabeche, um riquíssimo espólio bibliográfico e fotográfico. Entre as obras patentes, salienta-se a quase completa colecção da revista Gina e as magníficas fotos do famoso fotógrafo italiano Pirelli.

Cumprido o dia de descanso, foi enfrentada a montanha de primeira categoria até ao alto da serra. A terminar, na etapa de consagração, foram dadas quatro voltas ao marco geodésico.

Todavia, nem tão extremo esforço valeu! O triste destino estava irremediavelmente traçado. Além disso, a Paulinha do 3º esquerdo afinal é Paulinho, fiquei como o carro amassado e fui despedido por ter faltado ao trabalho durante a peregrinação. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Flanelas


Flanelas

Desde gaiato que sou conhecido por flanelas. Tal alcunha foi-me atribuída ainda nos tempos da primária. Possivelmente para tal, contribuiu o facto de estar sempre na primeira linha de resposta aos pedidos do mestre-escola. Além disso, raras eram as semanas em que não agraciava o dito com oferendas.
O sucesso da bajulação na primária recomendou a sua introdução como prática habitual de manifestação de competência. De facto, desde os estudos, passando pelo trabalho e até em casa, o tratamento da flanela sempre mostrou ser uma mais-valia.
Ao longo do percurso académico, a técnica foi sempre idêntica. Ir a todas as aulas, incluindo as suplementares, acenar positivamente com a cabeça a todas as declarações do professor e, finalmente, ter sempre algo a acrescentar. Esta última, de extrema importância, dado que apesar do risco envolvido em dizer algo óbvio ou mesmo ridículo, demonstra interesse. Igualmente essencial, é a presença, no mínimo semanal, no gabinete do professor para tirar dúvidas. Esta comparência, de caracter obrigatório, não se deve limitar à existência de dúvidas. Notar que estas, caso existam, são apenas e exclusivamente devidas a limitações próprias e nunca o resultado de deficiente explanação da matéria. Uma visita ao gabinete do professor representa uma bela oportunidade para quem não querendo, mas até quer, largar uns subtis elogios ao dito.
Adoptados os prévios preceitos, gozámos do cocktail necessário e suficiente, para dispensar equivalências e chegar a Doutor. Todavia, existem casos de professores imunes à terapia, resultando necessário estudar e, em condições extremas, recorrer mesmo a uma mezinha alternativa. A cunha metida por um padrinho! Neste caso, é de extrema importância a certificação da mestria do padrinho a entalar calços. Lembrar que um bom patrono tem, obrigatoriamente, que ser por afinidade um excepcional lambe-botas.
Por outro lado, se levarmos em linha de conta que o período dos estudos, pela via tradicional1, demora em média 20 anos, facilmente se depreende que bajular apenas numa actividade, resulta em prejuízo.

1.Fazer todos os anos lectivos e, um de cada vez, em contraponto à aquisição de pacotes promocionais de cursos por atacado.

Deste modo, é proveitoso agarrar as oportunidades lançadas no seio de determinados ajuntamentos, nomeadamente dos que nutrem interesse pelo bem-estar da sociedade. Ciente desse facto, paralelamente aos estudos passei a partilhar de convicções, que além de fortes e precisas eram também, quiçá, palermas. Além de novas doutrinas, fiquei apetrechado também de padrinhos.
Entretanto, finalizados os estudos, chegara o momento de procurar emprego. Detentor de um, não menos que destinto, currículo académico na área da construção, nomeadamente de legos, concorri a dezenas de firmas do sector da construção. Recebi então uma convocatória para prestar provas numa delas. Chegado o dia lá me apresentei. Vá lá saber-se porquê, entre vinte candidatos, obtive a última classificação na prova escrita. Garantidamente, tal falhanço resultou da deficiente formulação das questões. Todavia, na entrevista, obtive a classificação máxima. Aliás, o responsável dos recursos humanos2 sugeriu-me o cargo de responsável nacional da divisão de obras, em detrimento da vaga de engenheiro estagiário. Embora reticente, acabei por aceder. Nestas coisas, há que saber fazer sacrifícios, começar por baixo e, dar tempo ao tempo.

2. Curiosamente, também ele era afilhado de um dos meus padrinhos.

Iniciadas funções, procurei desde o primeiro dia, como de resto sempre foi meu apanágio, mostrar competência. Mesmo quando não podia ajudar, atrapalhava, afinal o importante era participar!
À acção da flanela ninguém escapava, toda a cadeia hierárquica era polida. No lote, estava incluído um senhor baixote3, que às vezes deambulava pelos corredores e que, habitualmente, também participava na festa de Natal. No caso da gerência, a receita aplicada passava por relatar todos os comentários e juízos, que eram avançados pela classe operária na véspera, durante a confraternização pós-laboral. Aos operários era prescrita camaradagem e críticas anti capitalismo. A estratégia foi um sucesso! Após três meses, oito greves e um despedimento coletivo, chegaria uma promoção. Esta, não menos que merecida, atirava-me para a administração.

3. Normalmente, usava um pijama branco com uma inscrição que dizia: centro hospitalar qualquer coisa.


Depois de meia dúzia de anos como administrador privado, chegara o momento de dar o contributo ao meu País. Motivado, essencialmente, pelo desafio de poder gerir o dinheiro dos outros, voluntariei-me para gestor publico. Desde então, além de acumular no currículo várias insolvências, tornei-me também padrinho!

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Raposa velha


Raposa velha

A mentira, tal como uma combustão, requer três elementos. No caso da aldrabice, serão então: o aldrabão, o aldrabado e o motivo. Confesso que, nunca gostei de trapaceiros! Aliás, nutro por eles um enorme desprezo. Afinal, se há coisa que não aprecio, é concorrência!
No entanto, a concorrência existe e, é numerosa. De facto, um estudo científico revelou que cada pessoa mente em média 200 vezes por dia. Notar que nesta média, por dificuldades de contagem, não são consideradas as mentiras diárias proferidas por pescadores, caçadores e, fundamentalmente, por políticos.
Todavia, o dito estudo permite concluir que todos nós temos um pouco de Pinóquio. Outra conclusão que pode ser retirada é que existem, pelo menos, 467 mil milhões de pecadores no planeta. Isto se levarmos em linha de conta que a mentira é pecado e, que 1/3 da população é cristã.
No meu caso, os primeiros indícios como trapaceiro, surgiram ainda em tenra idade. Lá pelos 10 anitos, iniciei-me como mentiroso do tipo bondoso, ou seja, aldravava esporadicamente para sair de alguma situação menos cómoda. Essas, normalmente, eram as más notas, os atrasos, qualquer coisa que aparecia estragada, etc. Confesso que devido à falta de habilidade, não raras vezes era desmascarado. Lembro uma, entre muitas, dessas falhas. Certa vez, escangalhei um ferro de engomar e, em vez de ficar calado, atirei: “se o ferro estiver estragado, não fui eu!”. Como se não bastasse, juntei ainda: “quando o utilizei estava a funcionar!”. Comportamento típico de um pato-bravo!
Actualmente, ainda é recorrente ter de usar o embuste bondoso. Disso, são exemplo, os falsos elogios do género: “estás tão linda hoje”, “essa roupa parece que foi feita para ti”, “que boa ideia chefe…” ou então “o jantar estava um espectáculo”. Esta classe de mentira serve essencialmente para não melindrar os outros.
Todavia, quando devidamente aplicada, a falsidade bondosa pode inclusivamente conduzir a agradáveis gratificações. Excepção feita nos casos em que são utilizadas afirmações do tipo: “é só mais cinco minutos, estou a chegar…”, “podes ficar descansada…” ou então o clássico “assim que puder ligo-te…”. Obviamente, estas mentiras estão inquinadas à partida, pois são imediatamente identificadas.
Já na adolescência, à aldravice bondosa, juntei a da aparência. Nessa fase, foi de extrema utilidade, uma vez que serviu, fundamentalmente, para fazer parecer aquilo que não era. Comentários sobre as conquistas, as aventuras do dia-a-dia, etc. Resumindo, era usada quando pretendia fazer passar uma imagem de mim próprio, melhor do que a que verdadeiramente acreditava que tinha.
A prática desta política de aparências mostrou-se, no entanto, bastante problemática. Esta estirpe de fraude implica, amiúde, ter que inventar uma infinidade de muletas para a sustentar. Mais grave! Por vezes, surge a necessidade de sê-lo, em vez de parece-lo. Ora, exageros e abusos, tem como consequência normal rombos financeiros ou o desmascaramento do embuste.
Neste contexto, é de evitar usar o logro da aparência sempre que envolva grandes investimentos ou acções consideradas, no mínimo, parvas. É quase suicida, inventar que se tem um mercedes, quando se conduz uma porqueira de dois lugares. Ou então, querer parecer o tipo mais radical da rua, afirmando que nas férias nadou no meio de tubarões assassinos, quando na verdade passou férias na praia fluvial.
Seguindo o natural trajecto de aperfeiçoamento, cheguei a mentiroso compulsivo. Então sim, passei a encontrar desculpa para tudo e, passei a mentir com a maior das convicções. Inclusivamente, passei a acreditar nas próprias mentiras. Disso é exemplo, o desplante de em resposta ao toque da campainha da porta de casa, declarar: “não, de momento não estou! Saí e só volto no final do dia”.
Paralelamente, desenvolvi aptidões no domínio das meias-verdades e da omissão. Estas competências, extremamente úteis, servem para atenuar ocorrências, ou então, para evitar entrar em enredos demasiado tortuosos. Na verdade, existindo a possibilidade de escolha entre omitir e mentir, a primeira poderá garantir o mesmo fim, sempre com menor risco envolvido.
Notar, porém, que a arte do logro só será bem-sucedida, se o intrujão for igualmente hábil no campo da representação. Por mais elaborada e requintada que seja a mentira, pequenos detalhes poderão ditar o falhanço da operação. Pormenores como, colocar as mãos nos bolsos, mexer no cabelo ou olhar para o chão, enquanto se aplica a peta, são falhas comuns. Igualmente habitual, é o erro de reforçar alguma palavra ou frase. Mas pior, com direito a certificado de incompetência é, por exemplo, quando se oferecem presentes fora de datas especiais ou quando escapa à postura normal. Isto é quase tão suspeito como: “se o ferro estiver estragado, não fui eu!”. Nestas condições, o embusteiro além de pato-bravo é ainda otário!
Por outro lado, o intrujão deve possuir a capacidade de identificar situações de aperto. Uma situação comum é, por exemplo, quando uma mulher repete várias vezes uma pergunta. Nesse caso, é quase certo que ela já sabe a verdade e, pior, possivelmente tem provas!
Calma, nem tudo está perdido. Nesta situação, a estratégia a seguir deverá considerar a contenção de dano. Para isso, em jeito de confissão, convém admitir algumas peças do puzzle, omitir outras e, fundamentalmente, alterar o cariz das restantes. Baralhar assuntos, relativizar falhas, sempre de forma expedita e coerente é também uma boa orientação. Dependendo do desempenho resultará, por exemplo, um: “Perdoo-te, mas não esqueço!” ou “Fiquei magoada, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar em ti.". Numa actuação de nível superior, poderá mesmo surgir: “Desculpa ter duvidado, mas tudo apontava para isso!”.
Atingido tal patamar de excelência, estamos perante aquilo que poderemos apelidar de raposa velha. Este ser, é exímio a utilizar o embuste em proveito próprio, qualquer que seja o motivo. Manhoso por natureza, é bastante ágil com as palavras, é credível e expedito de raciocínio. Quando em plena forma, resulta algo difícil o seu desmascaramento.

Todavia, é possível, mas arriscado, aldravar uma raposa. Perante tal situação, se a raposa descobrir, oculta que sabe do embuste e aguarda, serenamente, o momento certo para entalar o aldravão. Em caso algum, esquece! Não que seja vingativo, mas porque, não gosta de ficar a dever nada a ninguém!

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Adepto da bola

Adepto da bola

Se há algo que me chateia, mesmo muito, é o Benfica não perder! O Sporting não ganhar é uma coisa, agora os vermelhos ganharem é que me custa. No mínimo o empate, meia derrota, sim é um facto, mas para mim é meia victória! Esta não voa no estádio, mas dá-me uma alegria interior tão grande, como aquela que sinto quando recebo algo das finanças…Infelizmente coisa rara, no que respeita às finanças!
Em catraio comecei a ir à bola. Num jogo da 2ª divisão1, fiquei junto a um individuo, de idade avançada, que conhecia muito bem o bandeirinha.

1. Em tempos, era a liga de uma bebida qualquer.

De facto, não conhecia apenas o homem da bandeira, sabia também a profissão da mãe, os atributos físicos do pai e, por vezes, fazia ainda referência à irmã. Fiquei fascinado! Estranhamente… o fiscal de linha nunca respondeu.
Após alguns anos a frequentar os jogos da liga secundária, resolvi reforçar a dose e passei a assistir a jogos da 1ª divisão.
Até então, apenas os acompanhava na telefonia. A emoção era outra, afinal bastava a bola passar a linha divisória que a agitação do relatador era tal que sugeria golo eminente. No estádio, era tudo mais calmo. Pelo menos sempre havia menos jogadas de perigo, isto apesar de ser igual o número de invasões do meio-campo contrário.
Por falar em invasões, recordo a operação realizada num jogo do campeonato distrital2.

2. Também esta liga, teve o nome de uma bebida.

Foram vividos momentos de grande agitação. Tudo começou quando a família do lateral direito Coxerro3 avançou colina abaixo em direcção à respectiva do médio centro, Machacho, que entretanto afrontava três adeptos, estes com motivação à mini.

3. Conhecido por todo o norte da freguesia como Pelé Branco.

Dos tumultos resultaram danos num guarda-chuva de 12 varas, efeito da repetida aplicação na lombeira do bandeirinha. Não fosse o aparato policial no local4 e poderia ter acontecido uma tragédia. Afinal o guarda-chuva era uma herança!

4. Dois militares e um cabo da GNR, automobilizados por um Land Rover.

Nos jogos da liga, cuja bebida paga mais, o espectáculo é outro. Para já, não são utilizados guarda-chuvas de tantas varas. Em vez disso, existem adeptos que se fazem acompanhar de uma espécie de bandeira, composta por um mastro com um lenço da mão preso na ponta5.

5. Modo de aplicação e efeito terapêutico idêntico ao do guarda-chuva.

Notem, porém, que aqui o uso do guarda-chuva poderia resultar algo ridículo. Para isso contribuem alguns indivíduos que em pleno Janeiro assistem à bola no estádio em tronco nu. Sim, no estádio, em casa não pode ser, na medida em que a pele do sofá é de imitação e deixa nódoa.
Durante a juventude, inspirado pelo espirito combativo e voluntarioso dos membros das claques de futebol, resolvi ingressar numa. Para estar à altura das funções, frequentei os cursos básicos de iniciação à pirotecnia, escaramuças urbanas e lançamento de projécteis. Durante algum tempo as coisas até nem correram mal. Excepção feita quando para marcar posição, na falta de outros artigos, eram arremessadas moedas. Cheguei a investir parte do subsidio de Natal6 num único jogo. Todavia, motivado pelo reumático tive que dar baixa da actividade. Agora, bola só no sofá e com a t-shirt vestida.

6. Na altura os funcionários públicos ainda tinham Natal.

Actualmente, a importância dos jogos da liga principal eleva-se ainda mais quando surgem na TV programas, em que painéis de comentadores esmiúçam os mais ínfimos pormenores de um jogo. É no mínimo brilhante, quando um qualquer ex-árbitro consegue, por exemplo, deslindar um penalti após somente dez repetições em camara lenta e, de três ângulos diferentes. Mas, mais que delicioso, este assunto, pode ser uma oportunidade de negócio. Senão vejam. Dos comentários podemos concluir que um árbitro atinge o auge da mestria lá para os 50 ou 60 anos. Como com essa idade resulta complicado correr 90 minutos, logo o arbitomóvel seria a solução! Equipado com um motor ecológico7 permitiria ao árbitro deslocar-se comodamente dentro das quatro linhas. Mais, em situações de aperto podia ser utilizado para retiradas estratégias ou, como mais vulgarmente designado, dar à sola.
Para terminar, nem poderia de ser de outra forma, parabéns à França! Afinal, não é todos os dias que se consegue um segundo lugar…
7. Todo ele pintado em verde alface e alimentado a gasóleo agrícola.



terça-feira, 9 de agosto de 2016

A alternativa é falecer


A alternativa é falecer

É recorrente no cotidiano ser-se vítima da seguinte observação: “estás a ficar velho!”. Para tal, serve de motivação, por exemplo, a dificuldade em ler letras miudinhas, o reumático que ataca ou, simplesmente, os filhos que cresceram. No meu caso, sempre respondi: ”é a vida!”.
De facto, a alternativa a envelhecer é falecer, coisa que não considero particularmente agradável. Além disso, tal desvario implicaria um forte arrombo no orçamento. Fazem ideia de quanto custa uma coroa de flores? Então e a urna? Isto, já para não falar no talhão destinado à edificação da última morada. Pois é, está tudo pela hora da morte!
Todavia, chegado aos noventa anos, entendo que não foram razões como as apontadas atrás ou, outras ainda, como o surgimento dos cabelos brancos e de rugas que marcaram o início da era do caruncho. Verdadeiramente, os primeiros sinais, surgiram quando comecei a preferir andar só, do que mal acompanhado. De facto, estou hoje convicto que a capacidade para aturar palermas é inversamente proporcional à idade. Igual indicador apareceu quando as mulheres passaram do desprezo, para um modo extra respeitoso e, em alguns casos, até carinhoso. Mais, os piropos, passaram a levar como troco, sorrisos. Estava lixado! Tinha chegado aos 70! Agora sim, estava a ficar velho!
Foi por essa idade que, muito a custo, lá consegui alcançar a reforma. Sim foi difícil! Sempre que estava quase, lá avançava ela mais um ano. Isto, a uns rapazolas de gravata, tenho de agradecer. Os mesmos que, várias vezes, consideraram que era malandro por deixar de trabalhar. Talvez tivessem razão. Afinal, só trabalhei 50 anos. Provavelmente, ainda teria muito para dar ao ofício, isto apesar de já ter a capacidade ocular algo reduzida.
Durante a minha carreira como bandarilheiro, participei em inúmeras corridas, porém, as mais emocionantes haveriam de ser as derradeiras. Recordo uma dessas lides, em que devido a uma lamentável ilusão óptica, apliquei ao corneteiro1 um par de bandarilhas.
1 É comum afirmar-se que a diminuição de um sentido apura outro. Esta poderia ser a explicação pela atracção para com o homem do cornetim. Mas não, uma vez que além da visão, a audição também já era limitada.
Facto que originou tamanha desconsolação no toiro, que teve mesmo de receber apoio psicológico. Ainda assim, fui aplaudido! Para isso contribuiu, a manifestação que decorria no exterior da arena, em favor dos direitos dos animais. Ao que me parece, os defensores dos animais, maioritariamente de quatro patas, não reconhece o talento que alguns possuem no domínio de cravar ferros no lombo de um animal que, nem sequer pediu para ali estar. Claramente, são uns insensíveis, motivo pelo qual não sabem apreciar tal arte!
Sem dúvida, poderia ter continuado a triunfar nas arenas. Mas não, escolhi viver à grande, patrocinado pela pensão de aposentação! Folgado com os quase 300 euros de pensão, os primeiros tempos foram de verdadeira loucura. Comprei uns óculos, um auricular amplificador e uns sapatos ortopédicos2.
2 Fiz um crédito a 40 anos. Como devem calcular, alguém vai levar calote.
Reunidas as condições mínimas, passou a ser só ramboia! Ele era excursões organizadas pela junta, jogatanas no centro de dia, visitas ao centro médico e, às vezes, idas às urgências do hospital. Enfim, era chapa ganha, chapa gasta! Embora que, nos meses em que visitava urgências, sempre amealhava uns trocos. Normalmente, o tempo de espera rondava as 8 horas, pelo que poupava, normalmente, duas refeições.
Para as despesas, contribuía ainda o consumo de drogas. Sim, dessas legais, em que os dealers estão nas farmácias. Agora, apesar de reabilitado, de vez em quando, ainda tenho recaídas. Por vezes, vou para comprar um emplastro e zás, assoma a tentação, acabo por levar uns speeds para a tensão arterial!
Em determinada altura, consciente da necessidade de reduzir despesas, decidi cortar nos bens supérfluos. Deixei de consumir drogas, cortei nas saídas ao médico e alterei o plano de alimentação. Passei a só almoçar às segundas, quartas e sextas. Às terças, quintas e sábados, jantava. Aos domingos, era chá para livrar a tripa dos excessos da semana. Não fora o corpo suplicar pelas drogas e, sugerir o uso de roupa três números abaixo, o plano de poupança haveria sido um sucesso.
Mudando de assunto, hoje, aos noventa, considero que já não tenho nada a perder. Por isso, digo e faço tudo o que apetece. Bom, também não é tanto assim. Para expor o que pretendo, fico sujeito à colaboração da memória. Por vezes, só após muito esgravatar nela, recordo o jantar do dia anterior. Curiosamente, episódios com vinte e, mais anos, continuam fresquinhos. Por exemplo, tenho vivas na memória as palavras proferidas pelo corneteiro antes de ser ferrado com um par de bandarilhas: “Fujam! Ai… Ai… Não as rodes…”. Fazer o que apetece, isso já depende da colaboração da carcaça. Notem que, aos noventa andar a pé sem amparos é, no mínimo, extraordinário. Naturalmente, correr não passa de uma utopia.
Outra característica dos noventa é a escassez de amigos. Não porque se tenha mau feitio, mas porque estes deixaram de envelhecer. Além de triste, esse facto, inviabilizou no meu caso, a iniciação no crime organizado. Em mente, tinha planeado formar uma quadrilha, com interesses no domínio da pilhagem. Notar que, nesta idade, ser meliante, é uma das poucas distracções que integra quase só vantagens. Algumas delas são, por exemplo, a ocupação dos tempos livres, a actividade física, o estímulo mental e, ainda, o retorno financeiro3.
3 Caso existisse, talvez, liquidasse o crédito contraído.
Por outro lado, mesmo que fosse caçado, na improvável, senão impossível, hipótese de ser sujeito a julgamento em tempo útil, uma condenação dificilmente seria cumprida. Ainda que o fosse, era proveitoso, uma vez que, significava que continuava a envelhecer!
Para finalizar, confesso que, por vezes, dou por mim a pensar: “como seria bom voltar a ter setenta anos!”. Parece que tudo no passado era perfeito, tirando o facto de nos trazer o presente. Assim sendo, sugiro que não se lamentem e aproveitem a vida, porque envelhecer é um privilégio e, a alternativa é falecer!