O dinheiro não é tudo
Desde
rapazola que detesto tudo aquilo que dá trabalho. Afinal, se algo é difícil, é
porque não vale a pena ser feito! Concluindo, resulta sempre melhor ver coisas,
que fazê-las. Esta antipatia pelo trabalho surgiu logo na primária, por ocasião
do acolhimento de umas reguadas, consequência do erro ortográfico cometido a
escrever a palavra trabalho. Daí em diante, só de pensar em tal coisa,
desenvolvo imediatamente urticária.
Todavia,
findados os estudos e fortemente coagido por familiares, lá tive de ir vergar a mola. Teve de ser! Mas, até enveredar
por tão penoso caminho, escutei de tudo! Ele foram conselhos de que sem
trabalho não se consegue nada, que trabalhar dá saúde e faz crescer, eu sei
lá... Entre as frases feitas, usadas para me impingirem tal suplício, a mais
rebuscada de todas era “O único lugar
onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário”. Ora, o problema é
que no mesmo manual, trabalho é também sinónimo de fadiga. Ou seja, é de
evitar!
Contudo,
na falta de alternativa, tive mesmo de ceder. Para ajudar na escolha da
actividade, recorri a um profissional da área da psicologia. Após detalhado
estudo vocacional1, o clínico haveria de concluir que além da
ausência de qualquer vocação, o meu ser juntava múltiplas personalidades. Ora,
como nós não concordamos com tal diagnóstico, resolvemos decidir por nós
próprios!
1 Até uns testes fiz… acho que se
chamavam pirotécnicos.
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A
preferência acabaria por recair sobre o sector alimentar. Vai daí, fiz carreira
como provador de comida para animais. Até nem ganhava mal, não fora metade do
valor auferido ser imediatamente canalizado para impostos. Ainda assim, nunca
passava fome. Não era mau!
Nas
viagens para o trabalho, volta e meia, passava por mim um veículo preto topo de
gama. Nessa altura, quase imediatamente, surgia-me no pensamento: “que tipo trabalhador… até deve trabalhar aos
sábados à tarde para conseguir ter um carro assim!”. Todavia, para escapar
à própria frustração, obrigava-me a acrescentar a tal reflexão o seguinte: “Sou pobre, mas honrado. O dinheiro não é
tudo!”. Afinal de contas, o dinheiro não é mesmo tudo, há também, por
exemplo, o ouro, os diamantes e os bens.
Ainda
assim, movido pela ambição de mercar um carro, cujos pneus fossem mais caros
que o atacado do actual, resolvi acumular outro emprego. Comecei a trabalhar todos
os dias do mês, incluindo sábados à tarde. Finalmente, estavam reunidas as
condições para a compra.
Aconselhado
por vários, desloquei-me ao afamado stand
do Bolacha. Nessa superfície comercial,
era vasto o leque de viaturas… quase quatro. Mais, estas eram todas da máxima
confiança. De facto, o mestre Bolacha apenas transacionava veículos cujos
anteriores proprietários fossem, ou tivessem sido, padres ou professoras.
Escolhida
a viatura, foi só tratar do crédito2. A opção não
poderia ter sido mais feliz, além da cor, preto fosco3, do
autocolante no vidro traseiro a dizer Alpine,
o dito cujo até rádio tinha!
2 Este por sinal muito jeitoso.
A soma dos dois
vencimentos, quase que chegava para a mensalidade.
3
Questionado
sobre a falta de brilho da cor, o mestre Bolacha garantiu que as pinturas
modernas eram assim, isto para evitar ficarem ressequidas pelo sol.
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Todavia,
preocupações ambientais e, alguns detalhes relacionados com a liquidação da
mensalidade do crédito, ditaram a prematura retoma da viatura. Hoje, a bem da
saúde e do ambiente, desloco-me a pé. Na verdade, já antes o fazia amiúdas vezes.
Para isso, contribuíam as constantes deslocações à oficina, motivadas pelas
indispensáveis afinações, nomeadamente, a nível do funcionar.
Liberto
de encargos, resolvi abandonar as ocupações assalariadas e candidatar-me a uma
vaga no fundo de desemprego. Finalmente, passaria a receber o vencimento a
tempo e horas. Por outro lado, o montante passaria a ser compatível com as
responsabilidades.
Beneficiando
do tempo livre, resolvi frequentar as formações disponibilizadas pelo referido
centro. A título de exemplo, recordo um dos cursos que frequentei, intitulado: caça e pesca, uma abordagem empreendedora.
Além de engrossar o nível de aptidões, mais importante ainda, era o facto de frequentar
tais cursos dava direito a subsídio de repasto.
Enfim,
não fora pelas constantes propostas de trabalho e, provavelmente, este teria
sido o período mais proveitoso da minha vida. De facto, sempre que surgia uma
vaga para um qualquer cargo compatível com as habilitações, era um sobressalto.
Isto, porque alguns dos potenciais empregadores, insistiam que dispunha das
condições necessárias e suficientes para o cargo. Ainda assim, embora por vezes
a custo, lá os fui demovendo de tal ideia peregrina
Com
o decorrer do tempo, percebi que este era o meu verdadeiro talento, viver de
subsídios! A habilidade para a coisa era tanta que, após findado o subsídio de
desemprego, resolvi candidatar-me a um rendimento mínimo qualquer coisa.
Além
disso, preocupado com o envelhecimento da população e, talvez também com o
valor do abono de família, procurei ampliar o agregado familiar. Todavia, esta inquietação
com as questões demográficas haveriam de resultar em problemas de espaço, no
luxuoso lar de uma assoalhada. Questão essa, contudo, prontamente resolvida através
da candidatura a uma habitação social. Actualmente, lá em casa oito frequentam
a escola e dez vivem de subsídios. Afinal, a formação é uma aposta de futuro,
desde que sustentada por bolsas, claro está!
Agora,
enquanto aguardo pela reforma, decidi tornar-me investidor, área das
raspadinhas. Além de não depender das flutuações do mercado, a negociação de tais
títulos é feita no momento. Ainda um destes dias, apenas com dois euros, obtive
um retorno imediato de 20 minis. E
assim vou levando a vida…
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