segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Flanelas


Flanelas

Desde gaiato que sou conhecido por flanelas. Tal alcunha foi-me atribuída ainda nos tempos da primária. Possivelmente para tal, contribuiu o facto de estar sempre na primeira linha de resposta aos pedidos do mestre-escola. Além disso, raras eram as semanas em que não agraciava o dito com oferendas.
O sucesso da bajulação na primária recomendou a sua introdução como prática habitual de manifestação de competência. De facto, desde os estudos, passando pelo trabalho e até em casa, o tratamento da flanela sempre mostrou ser uma mais-valia.
Ao longo do percurso académico, a técnica foi sempre idêntica. Ir a todas as aulas, incluindo as suplementares, acenar positivamente com a cabeça a todas as declarações do professor e, finalmente, ter sempre algo a acrescentar. Esta última, de extrema importância, dado que apesar do risco envolvido em dizer algo óbvio ou mesmo ridículo, demonstra interesse. Igualmente essencial, é a presença, no mínimo semanal, no gabinete do professor para tirar dúvidas. Esta comparência, de caracter obrigatório, não se deve limitar à existência de dúvidas. Notar que estas, caso existam, são apenas e exclusivamente devidas a limitações próprias e nunca o resultado de deficiente explanação da matéria. Uma visita ao gabinete do professor representa uma bela oportunidade para quem não querendo, mas até quer, largar uns subtis elogios ao dito.
Adoptados os prévios preceitos, gozámos do cocktail necessário e suficiente, para dispensar equivalências e chegar a Doutor. Todavia, existem casos de professores imunes à terapia, resultando necessário estudar e, em condições extremas, recorrer mesmo a uma mezinha alternativa. A cunha metida por um padrinho! Neste caso, é de extrema importância a certificação da mestria do padrinho a entalar calços. Lembrar que um bom patrono tem, obrigatoriamente, que ser por afinidade um excepcional lambe-botas.
Por outro lado, se levarmos em linha de conta que o período dos estudos, pela via tradicional1, demora em média 20 anos, facilmente se depreende que bajular apenas numa actividade, resulta em prejuízo.

1.Fazer todos os anos lectivos e, um de cada vez, em contraponto à aquisição de pacotes promocionais de cursos por atacado.

Deste modo, é proveitoso agarrar as oportunidades lançadas no seio de determinados ajuntamentos, nomeadamente dos que nutrem interesse pelo bem-estar da sociedade. Ciente desse facto, paralelamente aos estudos passei a partilhar de convicções, que além de fortes e precisas eram também, quiçá, palermas. Além de novas doutrinas, fiquei apetrechado também de padrinhos.
Entretanto, finalizados os estudos, chegara o momento de procurar emprego. Detentor de um, não menos que destinto, currículo académico na área da construção, nomeadamente de legos, concorri a dezenas de firmas do sector da construção. Recebi então uma convocatória para prestar provas numa delas. Chegado o dia lá me apresentei. Vá lá saber-se porquê, entre vinte candidatos, obtive a última classificação na prova escrita. Garantidamente, tal falhanço resultou da deficiente formulação das questões. Todavia, na entrevista, obtive a classificação máxima. Aliás, o responsável dos recursos humanos2 sugeriu-me o cargo de responsável nacional da divisão de obras, em detrimento da vaga de engenheiro estagiário. Embora reticente, acabei por aceder. Nestas coisas, há que saber fazer sacrifícios, começar por baixo e, dar tempo ao tempo.

2. Curiosamente, também ele era afilhado de um dos meus padrinhos.

Iniciadas funções, procurei desde o primeiro dia, como de resto sempre foi meu apanágio, mostrar competência. Mesmo quando não podia ajudar, atrapalhava, afinal o importante era participar!
À acção da flanela ninguém escapava, toda a cadeia hierárquica era polida. No lote, estava incluído um senhor baixote3, que às vezes deambulava pelos corredores e que, habitualmente, também participava na festa de Natal. No caso da gerência, a receita aplicada passava por relatar todos os comentários e juízos, que eram avançados pela classe operária na véspera, durante a confraternização pós-laboral. Aos operários era prescrita camaradagem e críticas anti capitalismo. A estratégia foi um sucesso! Após três meses, oito greves e um despedimento coletivo, chegaria uma promoção. Esta, não menos que merecida, atirava-me para a administração.

3. Normalmente, usava um pijama branco com uma inscrição que dizia: centro hospitalar qualquer coisa.


Depois de meia dúzia de anos como administrador privado, chegara o momento de dar o contributo ao meu País. Motivado, essencialmente, pelo desafio de poder gerir o dinheiro dos outros, voluntariei-me para gestor publico. Desde então, além de acumular no currículo várias insolvências, tornei-me também padrinho!

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