Ingresso para o purgatório
Além
de devoto, sempre fui um praticante assíduo de crenças. Ainda petiz fui
angariado para a catequese. Além disso, tornei-me sócio de várias congregações,
dos mais variados credos. Era aquilo a que se pode chamar um poliglota das
religiões.
Nesse
contexto, participava em todo o tipo de actividades, fossem elas ajuntamentos
para atestar milagres, peregrinações, voluntariado, pagamento de promessas,
automutilações ou mesmo evangelização de proximidade, nomeadamente em
emboscadas porta-a-porta. Sazonalmente, praticava também boas acções em prol da
comunidade. Contudo, este tipo de actividade nem sempre se revelava de fácil concretização.
Neste domínio, refere-se a título de exemplo, o caso do auxílio prestado a um
idoso para atravessar a rua. À partida tudo parece simples, não fora o velho
não querer atravessar e, para agravar a situação, ter em sua posse uma muleta
ou bengala.
Por
seguir tão à risca todas as leis divinas, poder-se-á dizer que o Paraíso estava
à distância de uma vida. Provavelmente, não teria direito a reforma, mas o
esplendoroso relvado do Éden estava garantido. Ou pelo menos assim o julgava.
Todavia, num fatídico dia tudo se alterou. Uma simples ida às compras acabaria
por alterar irremediavelmente o destino da derradeira viagem. O trajecto da última
viagem acabaria por ser alterado, aventando comigo para o Purgatório. Num
ápice, de fiel devoto, passei a humilde servo do Mafarrico. A luxúria, a gula, a
avareza, a ira, a soberba, a vaidade e a preguiça, passaram a nortear os meus
caminhos.
Na
origem de tal tragédia, esteve a simples aquisição de um sofá! Esse objecto, seja
ele de dois, três ou mais lugares, do tipo clássico ou contemporâneo, é uma
criação maligna. Acreditem! Independentemente da raça, tratam de cravar um espirito
pecaminoso nos seus proprietários, logo na hora da compra. Ora vejam. No
momento do pagamento, por pura sovinice regateia-se um desconto de 10 euros em
1000. Depois, acaba-se por levar para casa um de imitação de pele, só para
poupar mais 20 euros. Ou seja, a avareza a despontar.
Depois,
assim que o sofá assenta praça lá em casa, trata-se de mostrá-lo a todo e
qualquer individuo que apareça, seja por convite ou autorrecreação. Se isto não
é puro exibicionismo é, no mínimo soberba! Vaidade que se agudiza quando, arrogantemente
se comenta: “o meu sofá além de giro é bem
mais confortável que o teu!”. Embora aqui, possa estar também alguma inveja
à mistura, uma vez que o sofá do dito camarada é em pele genuína e tem chaise long.
Contudo,
a total desconsideração pelas leis divinas, apenas atingiu o seu esplendor
quando pequenas estadias, sentado a ver a bola ou programas culturais do género
“Drama Total – All Stars”, se
transformam em esticado ao comprido tardes inteiras, muitas das vezes a
enfardar sandes e a destilar minis.
Além
de patrocinar a preguiça e a gula, casos há em que a raiva e inveja poderão
também assomar. Exemplo disso, é quando já pronto para iniciar uma estadia na
horizontal, se é confrontado com o sofá já ocupado por outro habitante ou
visitante. Isto, a não ser, que a visita seja a Paulinha, a vizinha do 3º
esquerdo, ou equivalente. Nesse caso, a ira desaparece para dar lugar,
nomeadamente, à luxúria.
Estava
tudo perdido… Em desespero de causa, resolvi atirar o dito cujo pela janela1
e apelar aos poderes divinos para me livrar de tamanho infortúnio. Bom, caso
fosse possível, mantendo a parte da vizinha do 3º esquerdo. A oferenda apalavrada
foi uma peregrinação, a pé e por etapas, até centro geodésico de Portugal,
situado na Serra da Melriça.
1O
sofá, por ser tão malévolo, terminou a viagem desde o quatro andar no
tejadilho do meu carro.
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Estabelecido
o compromisso, iniciaram-se os preparativos para a ousada expedição. Alugada a
furgonete de caixa aberta para dar assistência e adquiridos os mantimentos, foi
repartido o percurso em etapas2. Além
disso, no sentido de envolver a comunidade em geral, especialmente os
indivíduos com défice de bom senso, foram abertas inscrições para o evento.
2Nesta
fase surgiram algumas dificuldades, nomeadamente o facto do ponto de partida
se situar a 15 minutos do destino.
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Esgotado
o prazo para os alistamentos, foram contabilizados um total de cinco
peregrinos, dois espectadores e o Francês3. Esta última personagem integrou
a caravana amontado na sua Casal de 5.
Ao serviço do jornal da paróquia, como repórter de som e imagem, o Francês teve
a seu cargo a cobertura do evento. Além disso, ficou também responsável pela
organização dos convívios de final de etapa. Aqui será de salientar a superior
competência com que desempenhou as funções de festeiro. Para algumas etapas,
conseguiu consagrados artistas da cantoria, alguns deles bastante jeitosos. No
seu espetáculo, utilizavam alta tecnologia, coisas do tipo playback e dançarinas com saias tipo cinto. Além disso, o fecho das
etapas era sempre abrilhantado com sandes de courato e inundações de tinto.
3O
Alfredo, mais conhecido por Francês, obtivera tal alcunha quando há uns anos
decidira emigrar para França. Contudo, devido a alguma desorientação e à sua
fraca aptidão para as letras, acabaria por ir parar a Itália, onde se
estabeleceu a vender laranjada. fase surgiram algumas dificuldades,
nomeadamente o facto do ponto de partida se situar a 15 minutos do destino.
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Chegado
o dia da partida, foi cumprido o prólogo a ligar o portão de casa à taberna do Gatuno4, numa tirada de quase 500 metros. Debaixo de um
sol escaldante, a etapa inicial foi cumprida, já com saudades de casa e com bolhas
nos pés. No dia seguinte, com dores em todos os membros e, escapando à tentação
de pedir boleia, foi levada de vencida a especial cronometrada de quase 2 Km, que
ligava Vila de Rei à Serra da Melriça. Na origem de tal sucesso, esteve a
perseguição movida por um canito
raivoso.
4A
taberna do gatuno, rotulada por
muitos como o berço dos bares culturais, albergava na galeria de acesso ao templo
gastronómico de ovos verdes e jaquinzinhos de escabeche, um riquíssimo
espólio bibliográfico e fotográfico. Entre as obras patentes, salienta-se a
quase completa colecção da revista Gina e as magníficas fotos do famoso
fotógrafo italiano Pirelli.
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Cumprido
o dia de descanso, foi enfrentada a montanha de primeira categoria até ao alto da
serra. A terminar, na etapa de consagração, foram dadas quatro voltas ao marco
geodésico.
Todavia,
nem tão extremo esforço valeu! O triste destino estava irremediavelmente traçado.
Além disso, a Paulinha do 3º esquerdo afinal é Paulinho, fiquei como o carro
amassado e fui despedido por ter faltado ao trabalho durante a peregrinação.
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