A estudar também eu…
Aos
6 anos de idade, já honoris causa em
vadiagem, fui incorporado na escola primária[1]. Tal instituição
tinha costumes que, no mínimo, podemos classificar de estranhos. Exemplo disso eram
os horários a cumprir, os trabalhos de casa, enfim aquilo a que hoje chamamos de
responsabilidades.
No
que toca à arquitectura, a escola padecia de uma enorme falta de gosto.
Imagine-se que na época, as primárias eram todas semelhantes. Além disso, os
materiais utilizados na sua construção não incluíam madeiras nobres nem tão
pouco ladrilhos especiais de corrida.
Então e o mobiliário! Além de ser igual em todas elas, não era de autor. Um
escândalo!
Na
altura senti alguma nostalgia. Tinha acabado a pré-primária! Como melhor e, único,
utente da instituição, a classificação alcançada nas actividades, não raras
vezes, roçava os vinte valores ou melhor, o hematoma. Uma mãe não perdoa… Contudo,
na primária a derradeira classificação passaria a resultar da apreciação do
consórcio mãe-professora. Com esforço, lá mantive a média. Sem falsas
modéstias, mas querendo, poderia mesmo ter alcançado outros patamares. Ainda
assim, não fui ambicioso. Senão reparem. Uns bonos caseiros estavam à escassa
distância de uma singela referência a um puxão de orelhas da professora. Sim,
na época os professores podiam puxar as orelhas, sem que daí resulta-se a instauração
de um processo disciplinar por agressão[2]. Enfim,
de facto, eles quase nem nos tocavam… apenas direcionavam a bela da cana ou a régua
de madeira.
No
que toca ao ensino, este era algo estranho. Além de termos que aprender a ler e
a escrever português, reparem bem, podíamos ser penalizados por cometer erros
ortográficos. Então e a tabuada! Era obrigatório sabê-la de cor, de trás para a
frente e vice-versa. Afinal, para que servem as calculadoras! Mesmo assim,
foram anos de glória. Esqueçamos lá as férias passadas de castigo.
Movo
agora o sentimento que em dois momentos, deveria ter dado por concluído o não
menos que brilhante percurso académico. Findada a 4ª classe, seria o primeiro
deles. Afinal já escrevia o nome completo sem olhar para a cédula[3] e, fazia
contas sem contar pelos dedos. O nível de conhecimento era tal que já sabia o
nome de todos os distritos do País e que o rio Tejo nasce em Espanha, enfim
gramática.
Na
época, na posse de tais habilitações literárias poderia ter chegado longe. Só
para terem uma noção, comparo com os tempos actuais. Então teria sido, por
exemplo, caixeiro, exactamente o mesmo que hoje, com sorte, espera um grosso
número de licenciados. Afinal, o ensino primário da altura era puxadinho!
Porém,
lá continuei a estudar, ou melhor, a passear os livros. A propósito de livros,
imaginem que na época a sua validade era superior a um ano lectivo. A
justificação para tal é que existiam elevadas preocupações ambientais, ou seja,
nada de abater árvores para fazer livros. A política era estimá-los. Logo, o
primeiro passo após a sua compra era usar umas quaisquer folhas, de padrão
sempre a roçar o bom gosto[4], para
forrar a capa dos ditos.
Além
disso, as matérias eram completamente diferentes das agora abordadas. Não
existia, por exemplo, a extra mundana e contínua evolução das regras de
aritmética, rios a nascer teimosamente por todo lado e a gramática em constante
mutação. Por estas e por outras, temos hoje de sacrificar a ecologia a bem de
uma aprendizagem que queremos actualizada.
No
que toca à vida académica, no ciclo[5] as
melhoras foram poucas. Se na primária era castigado, nos anos seguintes
continuei a sê-lo, mas isto só para manter o ritmo! Umas vezes à rasca, outras como
que por milagre, lá fui avançado nos anos lectivos. Por ser um pouco gabarolas,
tenho de fazer aqui um aparte. Na altura, e vejam bem a injustiça da coisa, era
possível e às vezes bastante provável, reprovar o ano. Isso mesmo, repetir o
ano escolar! Imagine-se, a idade não contava para nada! Felizmente, esse
aspecto foi corrigido para não forçar perdas de tempo a ninguém. Afinal chega a
ser desumano impor um número de classificações positivas a tantas disciplinas
diferentes. Resumindo, sou o maior! Tendo tido a possibilidade de reprovar,
isso nunca sucedeu.
Ainda
assim, algumas foram as vezes em que a sorte não me bafejou. Em fase já avançada
da adolescência, propícia a adquirir vícios, escapei aos escuteiros e às
drogas, mas fatalmente também às associações de estudantes. Neste domínio, foi
determinante a falta de espírito combativo e revolucionário, necessário para
agitar bandeiras em manifs.
Consequência disso não participei em importantes lutas, como por exemplo, a pela
abolição da Prova Geral de Acesso ao Ensino Superior (PGA), esse teste
complicado. Eu cá adorei a dita, para além de não saber o que estudar, logo não
o fiz, bastava estar a horas, embora de madrugada[6], armado
com uma esferográfica.
Contudo,
entendo agora que se tivesse participado nessa luta, ou outras do mesmo calibre,
estaria agora provavelmente agarrado a uma vida bastante desagradável. Talvez
fosse dirigente de uma força política, ou pior, deputado ou quem sabe até ministro.
Obrigado aos poderes superiores que me pouparam a tão penoso sofrimento. Afinal,
que mais desumano haverá que ser eleito por um distrito, muitas vezes só pisado
em viagem de férias, ou a caminho delas, e conseguir compreender e revindicar os
seus direitos, enfim um inferno! Depois, teria de viver em Lisboa auferindo de
um miserável subsídio de deslocação. Mas pior ainda, seria que prévias e profundas
convicções pessoais, afinal, não passarem de coisas de momento. Felizmente
passei ao lado de tudo isso.
Bom,
voltando à vida académica, assumo novo erro crasso. Definitivamente, o abandono
da carreira académica deveria ter acontecido lá pelo 9º ano. Sim, haveria sido
o momento certo! Nessa situação, teria angariado uns cobres[7] enquanto
aguardava pela oportunidade certa para prosseguir estudos. Contudo, estou
ciente que a dúvida surgiria: novas oportunidades ou maiores de 23? Que dilema!
Contar a história da minha vida ou ir para um curso de engenharia, sem nunca antes
ter tentado resolver uma equação de qualquer grau ou degrau, sei lá. Ainda
assim, com alguma frieza, julgo que escolheria o trajecto correcto: novas oportunidades,
seguido de um curso numa Universidade qualquer.
Lá
prossegui o secundário e, sorte à parte, lá conseguiu finalizar um curso
técnico-profissional. Sim, um daqueles extintos que agora parece que são úteis
para actuar sobre a profissionalização. Agora vejam bem, isto sim, foi uma nova
oportunidade, desenrasquei uma vaga no Ensino Politécnico. Foi uma sorte[8], dado
que essa época antecedeu a do surgimento massivo dos mesmos, que depressa se
assemelhou à dos tortulhos. Notem que disse Ensino Politécnico e não superior,
porque se repararem, hoje fala-se muitas das vezes de Ensino Superior Universitário
e de Ensino Politécnico. Provavelmente, os ensinamentos de um mesmo curso de
engenharia são diferentes. Melhor, temos, por exemplo, o Engenheiro Superior
Universitário e o Engenheiro Politécnico.
Por
outro lado, relembro que então as engenharias eram meia dúzia, hoje são umas
seis dúzias. Lá está, as engenharias sofrem da mesma moléstia das matérias dos
livros escolares, mutação constante! Só quem não quer, é que não entende a
necessidade de existirem algumas engenharias, como por exemplo, a Engenharia
das árvores de casca castanha, ramo dos eucaliptos e afins. Ora sigam o
raciocínio, mutação das matérias, mais livros, mais papel, logo alguém tem de
se preocupar com estes assuntos.
Bom,
sabe-se lá como, mas sem equivalências, lá obtive o canudo!
[2] Os ajustes de
contas, entre progenitores e professores, não eram praticados. Ao invés, ambos
podiam afiambrar os gaiatos.
[3]
O bilhete
de identidade só era necessário para ingressar no ciclo. Ou, como se chama
agora, 2º ciclo.
[8]
O facto de
ser calão, não contribuía em nada
para as classificações obtidas.
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