segunda-feira, 6 de junho de 2016

Fardas só no carnaval



Fardas só no carnaval



Apareci por cá no final do estado novo, ou melhor, na primavera dele. Logo, não tive a oportunidade de ser perseguido, nem de estar exilado em locais dantescos, tipo Paris. Mas, mais uma vez, fui um verdadeiro sortudo. Pois é, escapei à guerra do Ultramar. Vocês que foram ex-combatentes considero-os os maiores. Eu cá teria fugido!

Mesmo na carência de escaramuças, lá pelos meus 20 anitos, fui convocado para a inspeção militar. A importância da ocasião era tal, que obrigava a tomar banho e ao uso de traje a rigor, com gravata e tudo! No meu caso, para não usar uma gravata emprestada, levei a do meu primo.

No dia da vistoria, além de aprumadinho, apresentei-me guarnecido com uma panóplia de exames que certificavam a limitada, para não dizer total, inoperância do esqueleto. A juntar a isso, os doze cafés ingeridos em jejum garantiam uma tremedeira desapropriada a qualquer gatilho, ou pelo menos isso julgava eu... Contudo, o veredicto viria a ser… apto.

Pior ainda, a coisa viria a roçar o desastre quando me foram impingidas as forças especiais, tipo Rambo e sei lá mais o quê. Fujam! Do cardápio de opões, lá me inclinei pela marinha.

Apesar de ter sido considerado capaz, ainda tinha um trunfo a meu favor. Protelar a incorporação! Afinal, o simples facto de andar a estudar era suficiente. Delineada a estratégia, ou seja, estudar eternamente, a incorporação ficaria reservada, na melhor das hipóteses para a pré-aposentação. Estudei de tudo, até bordados! Todavia, não valeu de nada. Além dos subsídios, cortaram-me também os adiamentos!

Enfim, lá fui incorporado. O destino viria a ser uma base naval, daquelas com barcos e tudo. Lá, viria a cumprir as únicas férias isentas de custos. Estas, acabariam mesmo por ser prolongadas, uma vez que levantar cedo sempre escapou às minhas habilidades. Rapidamente, 12 meses se estenderam a 18. Não fora pelas constantes reduções de efectivos e, provavelmente, ainda hoje por lá andava.

A recruta foi bastante proveitosa. Por exemplo, tive a possibilidade de tentar aprender a nadar. De facto, o mar usado pela marinha em nada se assemelha ao da Beira Interior. Neste, um tipo molha-se e vai ao fundo! Não fora pela cisma para com o exercício físico, praticado nas horas e lugares mais impróprios, a recruta até nem teria corrido mal. Todavia, a destacada inabilidade física apresentada, nomeadamente ao nível do flutuar, fomentou a transladação para o exército.

Ai foi no mínimo expectacular! Logo para começar, após estudo detalhado das aptidões, fiz um curso de especialização em lavagem de viaturas. A motivação era tanta, que até passei a participar em exercícios militares.

No entanto, o pavor das chefias em ver-me empunhar uma arma, determinava que a minha missão em tais manobras fosse servir de peça de caça. No fundo, até nem era mau! Só eram permitidas balas de borracha e o uso de granadas era limitado a uma unidade por caçador. As mazelas, raramente, iam além de hematomas e pequenas fraturas.

Uma das vezes cheguei mesmo a participar na semana de campo. Num rasgo de confiança, ou mais provavelmente de desvario, o comandante permitiu que integrasse o final da coluna militar aos comandos de uma Berliet. Tudo correu pelo melhor. Após 20 km, sempre na esgalha, já não avistava o final da coluna e tinha atrás uma fila de trânsito que se estendia por dois distritos.

Chegados ao local, andamos pelo campo, jogamos às escondidas, pintamos a cara e até fizemos um rally-paper. A coisa correu maravilhosamente bem. Além do contacto com a natureza, a jornada só me valeu três dias de detenção. Pois, no rally-paper, que afinal era um exercício de orientação, perdi-me e fui parar a Espanha.

Em poucos meses de estadia, a folha de serviço mais parecia um romance. Na despedida, assemelhava-se a uma enciclopédia, em vários volumes. Apesar disso, a troco da promessa de não mais voltar, nem sequer de visita, recebi do comandante uma carta de recomendação. A dita era no mínimo estranha. De facto, não fora pelo nome, julgaria que o restante conteúdo da carta se referia a outro. Por exemplo, às páginas tantas dizia qualquer coisa do género: “Fiquei impressionado com a sua capacidade em finalizar as tarefas que lhe dava atempadamente”. Do “fiquei impressionado”, não tenho dúvidas, agora da “capacidade” e em especial do “finalizar tarefas”, a conversa é outra. O desespero leva a estas coisas!

Mas bom, não me fiz rogado e procurei dar uso à carta de recomendação para tentar ingressar nos escuteiros. Destes, como resposta recebi: “Recusado, considere antes a consulta de um especialista do foro mental”. Imagino que na decisão, além do bom senso, pesou o facto de um acampamento de escutas de fim-de-semana ter resultado numa tarde, isto devido à fila de trânsito provocada por uma Berliet.

Como não sou de guardar rancores, esqueci o assunto! Mesmo assim, injustamente, haveria mais tarde de ser implicado em boatos lançados na imprensa. Neles, os escuteiros eram ligados ao tráfico de órgãos e ao consumo de estupefacientes. Isto, porque sem qualquer intenção, em carta anónima, enviada a seis jornais, referi ter visto 10 lobitos a carregar um órgão, enquanto consumiam umas coisas redondas[1].

Cansado de hierarquias, estabeleci-me por conta própria como caçador! Além da farda, dispensava de autorização superior para usar arma. A única dificuldade foi persuadir o médico de família a certificar a sanidade, imprescindível para o manuseamento de armas. Confrontado com o pedido, o clínico prontamente retorquiu: “antes por os pés num balde de merda”. Perante este cenário, despedi-me respeitosamente, endereçando cumprimentos à esposa e, também, à jovem do 5º esquerdo que ele frequentava no final da tarde. Sensibilizado pela cortesia, o Dr. repensou o caso e lá emitiu o atestado. De facto, ser educado não custa nada e faz toda a diferença!

Desfeito o impedimento, ingressei numa reserva de caça, cujos associados eram exímios na arte de alvejar galinhas disfarçadas de perdiz. Tudo decorria pelo melhor. Além das perdizes, por vezes, até javalis[2] abatia. Todavia, boatos sobre fogo indiscriminado sobre fauna, flora, bens imóveis e móveis, viria a criar um clima de grande suspeição entre os associados da reserva. A juntar a isto, da parte dos agricultores vizinhos, surgiram lamentos sobre o desaparecimento de animais domésticos, nomeadamente porcos.

Por outro lado, a habilidade, ou falta dela, para manusear o equipamento bélico viria a transformar a caça numa actividade bastante solitária. Os colegas tinham sempre compromissos e, os cães permaneciam resguardados em trincheiras até ao momento de regressar a casa. Desgostoso, pendurei a arma na lareira e, agora, fardas só no carnaval!






[1] Efectivamente, por lapso, não referi que era o órgão da igreja e as coisas redondas eram smarties.
[2] A espécie existente na reserva era de cor branca.

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