Urbanização da lua
O
que vou relatar é com toda a certeza, a mais grandiosa façanha dos Tugas. Esta estória, além de linda, está
repleta de heroísmo e superação. A imponência é tal, que quase enxovalha as
andanças das caravelas pelos mares. Ela foi, nem mais nem menos, a corrida pela
urbanização da lua!
Na
origem desta épica aventura, estiveram as crescentes disputas entre dois concelhos
limítrofes, situados na Beira Interior. A eterna rivalidade entre as duas
potências regionais, uma situada na serra da Gardunha e a outra na da Estrela, surgiu
durante a homenagem ao Santo padroeiro. O dito cujo, era agraciado com festejos
simultâneos nos dois lugares. Todavia, em comum, apenas se realizava a
procissão em sua honra.
No
alvorar do dia 7 de Janeiro de 1969, para engrandecer a respectiva festa, cada
povoação desatou a lançar foguetes para os céus, como se não houvesse amanhã. Tão
estrondosa disputa, apenas viria a findar quando um foguete tresmalhado arrebentou
com o santo padroeiro, já no andor para o passeio religioso da tarde. Além da
descompostura do prior, como castigo tiveram que alombar com o Febras, entretanto
empossado para substituir o santo Pantaleão no andor. Consequência do peso do
substituto, foi preciso recorrer a substituições dos carregadores durante o
cortejo. A necessidade de força bruta foi tal, que até o Tó paspalhão[1] foi
convidado a participar. A integração de tal personagem, em qualquer tipo de
actividade, garantia um risco quase natural da coisa correr mal e, às vezes,
mesmo muito mal.
Todavia,
a disputa entre as duas freguesias haveria de ser elevada aos píncaros, aquando
de uma acesa discussão entre o Anacleto e o Quim-da-vaca, naturais da Estrela e
Gardunha, respectivamente. A conversa primeira, acerca dos enfeites do Pingas,
nomeadamente a nível da cabeça, rapidamente resvalou para o bairrismo. Conversa,
puxa conversa, e o Quim atira: ”a Gardunha
é tão grande que até se vê da lua!”. Vai daí, o Anacleto, conhecido por
toda a região pelas suas amplificações, arremata: “pois, isso não é nada! A Estrela por ser tão alta, quase que toca na
lua”. Estava a contenda quase a descambar para a parte prática, designadamente
a nível da aplicação de umas arrochadas, quando o Cara-linda, filósofo de
taberna, argumenta: “só há uma maneira de
descobrir quem tem razão, é indo lá ver!”. Vai daí, sem estar de modas, o
Anacleto declara: “não é tarde, nem é
cedo! Amanhã começamos a tratar disso!”. Entretanto, o Prejudicado que
assistira à discussão atirou: “já que lá vão,
podiam era aproveitar para dividir aquilo em talhões para depois vender aos
chineses”.
Este ambicioso projecto, acabaria por potenciar o não menos
que improvável, esforço conjunto das duas populações. De facto, unidos por um
objectivo comum, conseguiram patrocinios de quase duzentos contos e a
colaboração pro bono do Candeias,
cientista de foguetes[2].
Decorreram
quatro meses, até que fosse possível anunciar o fim da construção da viatura espacial.
Em Junho, tudo parecia a postos. Faltava apenas colar os autocolantes dos
patrocinadores. Entre eles, sobressaia o slogan
do Stand Bolacha: “Stand Bolacha, o único com quase-novos para lunáticos”.
Infelizmente,
problemas com o equipamento de escrita, nomeadamente com uma caneta que
escrevesse na lua, ditaram o adiar do lançamento. Após longa pesquisa, a
solução para o problema acabaria por ser lançada pelo Alfredo, gaiato esguio de
cinco anos, que sugeriu a utilização de um lápis de cera. Finalmente, a rampa
de lançamento, a viatura espacial, o lápis de cera e o atado de foguetes
propulsores, estavam a postos.
De
acordo com o diário de bordo, no dia 16 de Julho de 1969 os cosmonautas, Nelo
Ambrósio, Eduardo Alvim e Micael Costa, amontados na ponta do foguete, Papalvo 11,
lá se fizeram ao caminho. Por ser Julho, resolveram ir pela fresquinha, partiram
às seis da matina. Era para ter sido às cinco, mas teve de ser adiado porque na
véspera o Alvim embriagou-se em virtude de ter recebido a conta da eletricidade.
Enquanto
os bravos marinheiros do seculo XX se faziam ao céu, o pessoal de terra procurava
controlar o incendio provocado pelos foguetes na rampa de lançamento,
construída com fardos de palha.
Entretanto,
a partir da sala de controlo, instalada num canto da tasca do Salsa, eram estabelecidas as primeiras comunicações com o veículo
voador. Embora algo estranho, considerando o estado da tecnologia e a enorme
distância entre os intervenientes, o facto é que as comunicações eram em tempo
real. Aliás, na conversa com o presidente da junta, a voz do Nelo até soava
melhor que ao vivo. Bom, o que se passou foi que o Hipólito fez não sei o quê
ao telefone… Enquanto os cosmonautas rumavam ao satélite, o Ti Salsa ia administrando uns penaltis de tinto para a empurrar os
ovos verdes e as pataniscas.
Finalmente,
ouviu-se o anúncio da chegada à lua. O local definido para poisar o módulo
lunar era o Mar da Tranquilidade, mas
os destemidos cosmonautas, Ambrósio e Alvim, decidiram alunar num vale glaciar.
Esta decisão deveu-se ao facto desse local ser bastante parecido com um existente
na Serra da Estrela. Foi então que Nelo Ambrósio fez história ao pisar pela
primeira vez solo lunar. As suas primeiras palavras foram: ”Merda! Molhei os pés”. Apesar do espaço
livre para poisarem, tinham-no feito nas bordas de uma charca. Calçadas as
galochas, lá iniciaram a exploração de tão inóspito local.
Recolhidas
umas amostras de plantas[3], tirados
uns retratos para mais tarde recordar e desfraldada ao vento a bandeira do
rancho folclórico, passaram a tratar do assunto primeiro da expedição: qual das
duas serras seria a maior! Foi então que a surpresa tomou conta de suas mentes.
Nem Estrela nem Gardunha, não se via era coisa nenhuma!
Quando
tudo parecia perdido, com a missão condenada ao fracasso, surgiu a
clarividência do comandante Nelo: “Calhando
não se enxerga nada por estarmos do lado de baixo da lua”. Ao que acrescentou:
“talvez até seja melhor assim! Para
evitarmos mais desavenças, dizemos que as duas serras são iguais e pronto!”
Posto isto, comeram a bucha e foram
espetar estacas para dividir a lua em talhões. Urbanizada a coisa, lá se
fizeram ao caminho de regresso a casa.
Após
aterrar no Zêzere, lá para os lados da Panasqueira, foram recolhidos por uma
ambulância. Isto porque foram proibidos de entrar na camioneta-da-carreira, não
por estarem molhados, mas porque afirmavam que tinham chegado da lua. Neste
contexto, o motorista, à cautela, ligou para o 112 indicando o local onde se
encontravam três indivíduos aparentando ter escapado de algum centro
psiquiátrico. Com isto tudo, a festa de recepção teve de ser adiada, pois a
medicação entretanto administrada aos valentes cosmonautas deixou-os a babar.
De
facto, a terapêutica aplicada foi de tal forma agressiva que ainda hoje, os
três apresentam sequelas. O Alvim usa uma boina da grande guerra e cavou uma
trincheira em volta de casa. O comandante Nelo dá palestras sobre a experiência
vivida quando foi raptado por extraterrestres. Finalmente, sobre o Micael as
últimas notícias vieram do Algarve, para onde emigrou pouco tempo depois.
Actualmente é conhecido por piriscas,
alcunha devida ao hábito de apanhar pontas de cigarro do chão para fumar.
[1]
De sua
graça António Oliveira, todavia, desde gaiato passou a ser conhecido em toda a
freguesia e arredores por Tó paspalhão. Tal alcunha, estabelecida pelo próprio
pai, surgiu aquando de uma conversa em que o Tó o tentava convencer de que era
o melhor aluno da escola. Como resposta o progenitor apenas disse: “Tó és mesmo paspalhão!”.
[2]
Trabalhou
na pirotecnia lá da terra até ao seu desmantelamento, nomeadamente ao nível das
paredes e telhado. Acerca deste episódio, o Candeias jura a pés-juntos que não estava a fumar
enquanto fazia foguetes.
[3] Evitaram
recolher pedras, já que é coisa que não falta na Estrela e Gardunha.
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