Utente do SNS
Desde
que nasci que gasto do serviço nacional de saúde. Do tempo em que trajava um
pano cruzado, firmado por um gigantesco alfinete, carinhosamente apelidado de
alfinete-de-ama, nada recordo. Como utente, as memórias primeiras, são as do
tempo da escola primária[1].
Nessa época, a malta da enfermagem ia à escola dar as vacinas. Eram momentos de
horror! Parecia o minuto 92[2]
para alguns adeptos de futebol.
Na
altura frequentava também o posto médico. Daí, recordo as palavras da senhora
do guiché: “vai ter que aguardar, o senhor
Dr. só chega às 11 horas!” Tinha cá um azar… as minhas consultas sucediam
sempre um turno de mais de 72 horas na urgência. Com toda a calma do mundo, lá
se aguardava pela consulta. Afinal já eram 9 horas e só tinha 10 pessoas à
frente. Sim, só 10 pessoas! Na altura já eram praticadas as vigílias nocturnas à
porta do posto médico. Após proveitosa espera, lá era atendido sem grandes
delongas, isto claro, para não atrasar o almoço. Não julguem porém que o Senhor
Dr. não era atencioso. Aliás, sugeria sempre: “se precisar, passe no meu consultório, estou lá todos os dias até às 11
horas!”
Além
do posto médico, visitava também as urgências hospitalares. Ai sim, era uma
tragédia! Senão vejam. Logo para começar não era utilizada a triagem de Manchester. Além de não ser fino, eramos
privados de uma senha verde, que facilmente nos habilitaria a ficar residentes
do local. Em vez disso, a ordem de atendimento seguia um procedimento
estranhíssimo: ordem de chegada! Felizmente, a malta madrugadora do posto
médico só fazia o turno da tarde.
No
hospital, para gozar de atendimento prioritário só havia duas hipóteses: ou nos
apresentávamos na horizontal ou então tínhamos um primo que tinha um amigo cuja
mulher do irmão do pai trabalhava no local. Dado a sofisticação da primeira
via, a malta com constipações passava no café para falar com um primo[3],
para este dizer ao amigo, para telefonar à mulher do irmão do pai, a avisar que
estavam à porta das urgências, já com uma pneumonia.
Das
incursões às urgências resultou alguma frustração. Primeiro, nunca fui
considerado prioritário no atendimento. Tenazmente, teimei em aparecer na
vertical e, para agravar a situação, o meu único primo não tinha amigos. Mas
pior que isso foi o travo amargo que carreguei durante anos por nunca ter
padecido de uma virose. Ele era isto, era aquilo e não sei mais o quê, viroses
é que nada! Agora, os putos vão ao pediatra e é quase garantido que são
contemplados com uma virose. O trauma é tal, que ainda hoje não arrisco
perguntar à mãe de um gaiato que vem do médico, qual foi o diagnóstico.
Contudo,
a questão das viroses quase ficava esquecida quando por volta dos 20 anos, embora
a ferros, lá adquiri uma maleita porreira, sarampo! Ainda assim, não era a
mesma coisa. Afinal de contas, um indivíduo com idade para ser adulto, mesmo
que a isso as acções não correspondam, pintas vermelhas na cara só podem ser
restos da puberdade ou então crise figadal.
Movido
pela ambição, resolvi estabelecer-me como hipocondríaco. Ramo de especialização
em enfartes e AVC´s. Esta sim foi a tábua de salvação para escapar às
frustrações e amarguras antigas. Senão vejam. O estatuto do hipocondríaco
permite desenvolver todo e qualquer tipo de sintomas associados às mais
variadas maleitas, incluindo viroses! À pois é!
Iniciei
rotinas diárias de taquicardia, suores frios e afrontas diversas. A juntar a
isso, elaborei um histórico da tensão arterial, com pelo menos cinco medições
diárias. Reunidas as condições, procurei abraçar em exclusivo a carreira de hipocondríaco.
Nesse
sentido, resolvi candidatar-me a uma baixa médica. Armado com um braçado de
chapas ao tórax e análises de todas as raças lá fui à junta médica. Apesar da
panóplia de potenciais maleitas, a junta deliberou que a condição necessária e
suficiente para obter a baixa era estar morto. Ora como isto envolvia o meu
posicionamento na horizontal de forma irrevogável[4],
resolvi dedicar-me à causa apenas em part-time.
O
empenho e dedicação à arte foi tal que até com senhas cor-de-laranja fui
agraciado em urgências hospitalares. Mesmo assim, não escapei a ser escalado
para turnos de espera superiores ao horário dos funcionários. Em desespero de
causa, houve ocasiões em que cheguei a ponderar desenrascar um amigo para o meu
primo! E acreditem, só não fiz porque ele, ambicioso, andou a estudar e pior,
licenciou-se em engenharia civil[5],
pelo que teve que emigrar.
À
parte disso, foi muito proveitosa a actividade desenvolvida. Consultas de todas
as especialidades, baterias de exames, enfim, as incumbências habituais de um
hipocondríaco. Uma dor no braço esquerdo indicará sempre que está eminente um
enfarte. Jamais será reumático! Afinal há que ter brio profissional. Mas
acreditem que nem sempre foi fácil. Imagine-se que na altura procuravam apoiar o
diagnóstico médico em resultados de exames! Que disparate!
Não
obstante, após profícuos anos no exercício do ofício, senão é que surge um
obstáculo quase intransponível. Saí aprovado com distinção de uma dura prova de
esforço! Parecia estar perante um fim de carreira inglório. Mas não! Voluntaria-me
para os hipocondríacos sem fronteiras! Vai daí, integrado na AHI[6]
fui para as Caraíbas. Nem a propósito, pus os pés em terra e iniciei
actividade: vista cansada e ânsias!
Sem comentários:
Enviar um comentário