terça-feira, 28 de junho de 2016

Utente do SNS

Utente do SNS

Desde que nasci que gasto do serviço nacional de saúde. Do tempo em que trajava um pano cruzado, firmado por um gigantesco alfinete, carinhosamente apelidado de alfinete-de-ama, nada recordo. Como utente, as memórias primeiras, são as do tempo da escola primária[1]. Nessa época, a malta da enfermagem ia à escola dar as vacinas. Eram momentos de horror! Parecia o minuto 92[2] para alguns adeptos de futebol.
Na altura frequentava também o posto médico. Daí, recordo as palavras da senhora do guiché: “vai ter que aguardar, o senhor Dr. só chega às 11 horas!” Tinha cá um azar… as minhas consultas sucediam sempre um turno de mais de 72 horas na urgência. Com toda a calma do mundo, lá se aguardava pela consulta. Afinal já eram 9 horas e só tinha 10 pessoas à frente. Sim, só 10 pessoas! Na altura já eram praticadas as vigílias nocturnas à porta do posto médico. Após proveitosa espera, lá era atendido sem grandes delongas, isto claro, para não atrasar o almoço. Não julguem porém que o Senhor Dr. não era atencioso. Aliás, sugeria sempre: “se precisar, passe no meu consultório, estou lá todos os dias até às 11 horas!
Além do posto médico, visitava também as urgências hospitalares. Ai sim, era uma tragédia! Senão vejam. Logo para começar não era utilizada a triagem de Manchester. Além de não ser fino, eramos privados de uma senha verde, que facilmente nos habilitaria a ficar residentes do local. Em vez disso, a ordem de atendimento seguia um procedimento estranhíssimo: ordem de chegada! Felizmente, a malta madrugadora do posto médico só fazia o turno da tarde.
No hospital, para gozar de atendimento prioritário só havia duas hipóteses: ou nos apresentávamos na horizontal ou então tínhamos um primo que tinha um amigo cuja mulher do irmão do pai trabalhava no local. Dado a sofisticação da primeira via, a malta com constipações passava no café para falar com um primo[3], para este dizer ao amigo, para telefonar à mulher do irmão do pai, a avisar que estavam à porta das urgências, já com uma pneumonia.
Das incursões às urgências resultou alguma frustração. Primeiro, nunca fui considerado prioritário no atendimento. Tenazmente, teimei em aparecer na vertical e, para agravar a situação, o meu único primo não tinha amigos. Mas pior que isso foi o travo amargo que carreguei durante anos por nunca ter padecido de uma virose. Ele era isto, era aquilo e não sei mais o quê, viroses é que nada! Agora, os putos vão ao pediatra e é quase garantido que são contemplados com uma virose. O trauma é tal, que ainda hoje não arrisco perguntar à mãe de um gaiato que vem do médico, qual foi o diagnóstico.
Contudo, a questão das viroses quase ficava esquecida quando por volta dos 20 anos, embora a ferros, lá adquiri uma maleita porreira, sarampo! Ainda assim, não era a mesma coisa. Afinal de contas, um indivíduo com idade para ser adulto, mesmo que a isso as acções não correspondam, pintas vermelhas na cara só podem ser restos da puberdade ou então crise figadal.
Movido pela ambição, resolvi estabelecer-me como hipocondríaco. Ramo de especialização em enfartes e AVC´s. Esta sim foi a tábua de salvação para escapar às frustrações e amarguras antigas. Senão vejam. O estatuto do hipocondríaco permite desenvolver todo e qualquer tipo de sintomas associados às mais variadas maleitas, incluindo viroses! À pois é!
Iniciei rotinas diárias de taquicardia, suores frios e afrontas diversas. A juntar a isso, elaborei um histórico da tensão arterial, com pelo menos cinco medições diárias. Reunidas as condições, procurei abraçar em exclusivo a carreira de hipocondríaco.
Nesse sentido, resolvi candidatar-me a uma baixa médica. Armado com um braçado de chapas ao tórax e análises de todas as raças lá fui à junta médica. Apesar da panóplia de potenciais maleitas, a junta deliberou que a condição necessária e suficiente para obter a baixa era estar morto. Ora como isto envolvia o meu posicionamento na horizontal de forma irrevogável[4], resolvi dedicar-me à causa apenas em part-time.
O empenho e dedicação à arte foi tal que até com senhas cor-de-laranja fui agraciado em urgências hospitalares. Mesmo assim, não escapei a ser escalado para turnos de espera superiores ao horário dos funcionários. Em desespero de causa, houve ocasiões em que cheguei a ponderar desenrascar um amigo para o meu primo! E acreditem, só não fiz porque ele, ambicioso, andou a estudar e pior, licenciou-se em engenharia civil[5], pelo que teve que emigrar.
À parte disso, foi muito proveitosa a actividade desenvolvida. Consultas de todas as especialidades, baterias de exames, enfim, as incumbências habituais de um hipocondríaco. Uma dor no braço esquerdo indicará sempre que está eminente um enfarte. Jamais será reumático! Afinal há que ter brio profissional. Mas acreditem que nem sempre foi fácil. Imagine-se que na altura procuravam apoiar o diagnóstico médico em resultados de exames! Que disparate!
Não obstante, após profícuos anos no exercício do ofício, senão é que surge um obstáculo quase intransponível. Saí aprovado com distinção de uma dura prova de esforço! Parecia estar perante um fim de carreira inglório. Mas não! Voluntaria-me para os hipocondríacos sem fronteiras! Vai daí, integrado na AHI[6] fui para as Caraíbas. Nem a propósito, pus os pés em terra e iniciei actividade: vista cansada e ânsias!



[1] Sim, aquela de arquitectura duvidosa e onde se podia chumbar!
[2] Vide campeonato português de futebol 2012/2013.
[3] Tinha de ser, não havia telemóveis e não sabíamos o número de telefone do café.
[4] Notar que a morte em nada se compara a uma demissão.
[5] Como foi pedreiro uns anos, obteve equivalência a curso e meio.
[6] International Hypochondriac Association.

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